domingo, 1 de junho de 2025

O Cão Negro

Hoje o soturno e espectral cão negro que habita as profundezas mais recônditas e ignotas de minha mente resolveu sair de sua toca e morder-me. Não foi uma mordida muito grave, pelo contrário, não me arrancou nenhum pedaço, foi apenas o leve e simples roçar de suas pontiagudas e ferinas presas em meu coração. Mas tanto bastou para contaminar minha alma com o vírus da apatia e a bactéria do desencanto. E, por consequência, acabar com meu ânimo, pelo resto do dia. 
Há décadas, essa sombria e feroz criatura vive a espreitar meus passos, silenciosa e obstinadamente. Para onde quer que eu vá, lá está ela, sempre, a me observar. É sua hedionda e repulsiva figura que se oculta, sorrateira e lúgubre, atrás de cada revés que sofro, atrás de cada negativa que ouço, atrás de cada rasteira que a vida me dá (e tem sido muitas, nos últimos tempos), como que a rir-se, sardonicamente, de meus fracassos, deleitando-se horrores com o meu sofrimento. Ela se esconde entre os troncos podres e calcinados da floresta morta que trago em meu peito, como no clássico poema de Kilkerry, e mistura-se, quase imperceptivelmente, com as frias e nuas sombras das ruínas que restaram de meus sonhos destruídos, apenas a aguardar, pacientemente, a hora certa para me devorar, de uma vez por todas. Conseguirá fazê-lo, algum dia? 
Receio que sim. Espero que não.

sábado, 19 de abril de 2025

Um Sábado Nublado

Pesadas nuvens escuras agora estão a se formar no céu, lentamente transformando o dia em noite. O vento aumenta de intensidade e faz as folhas das árvores dançarem com seu sopro forte. Há um nítido presságio de tempestade no ar. Isto, de certa forma, me alegra e conforta. Adoro este tipo de clima. Amo a chuva. Sou apaixonado pelo petricor. Parece que o nome que os estudiosos da mente humana dão à esta idiossincrasia climática é pluviofilia. Sou um pluviófilo crônico e convicto.

Estou sentado em meu quarto. Em breve, chegará o crepúsculo. A escuridão do anoitecer paulatinamente recobre os móveis e os livros. Sinto-me como se estivesse imerso num ambiente de dark academia. Gosto imensamente disso. É exatamente o tipo de ambiente em que nasci para estar. É onde realmente me sinto em paz. 

Esta é a atmosfera perfeita para ler “História Narrada ao Crepúsculo”, de Stefan Zweig, “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë, “Drácula”, de Bram Stoker, ou mesmo os contos de Hoffmann ou de Poe, acompanhado por uma generosa xícara de café ou chá, junto de minha estatueta de Atlas.

Acabo de voltar do trabalho. Não foi um dia especialmente cansativo, em termos de volume de demandas – nos sábados, normalmente, o número de suportes operacionais é bastante reduzido, em comparação com o fluxo dos dias úteis. Além do mais, hoje, surpreendentemente, foi um dia assaz interessante, do ponto de vista intelectual; somente os analistas de atendimento estavam presentes na sala da Qualidade, todos os monitores estavam de folga, e, num determinado momento, começou a se desenrolar ali, não sei a que propósito, uma espécie de debate sobre religiões e gêneros sexuais, o que deu azo, malgrado sua absoluta inocuidade, a inúmeras piadas simplesmente divertidíssimas — naturalmente, todas de duplo sentido, e politicamente incorretas — e algumas reflexões, até que bastante pertinentes, sobre políticas identitárias, que ajudou a fazer o tempo passar mais rápido. Mas minha bateria social ficou, como de praxe, completamente esgotada.

Os seres humanos, via de regra, me exaurem. São raros os momentos em que realmente gosto de socializar.  Na esmagadora maioria das vezes, sinto um desgaste imenso ao interagir socialmente. Nessas ocasiões, mal posso esperar para estar em casa, longe do barulho e do tumulto do mundo. 

Porém, há dias em que, nem mesmo em casa, tenho verdadeiramente sossego. Por exemplo, neste momento, ouço os gritos de minha mãe e de minha irmã e a algazarra das crianças, incluindo meu filho, do lado de fora da porta do meu quarto. Os moradores desta casa simplesmente não conhecem o conceito de silêncio. Nem o de privacidade. 

Normalmente, isto me exasperaria profundamente, e poderia até me levar ao extremo de ter um ataque de fúria. Hoje, no entanto, sinto-me singularmente sereno e em paz comigo mesmo e, inacreditavelmente, com os demais homens que habitam este pálido e turbulento ponto azul. 

Com toda a certeza, por influência do clima.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

O Grau Zero da Crítica

Negativa ou positiva, construtiva ou destrutiva, o importante é que a crítica literária, como a crítica de qualquer outra forma de criação artística, seja fundamentada em sólidos critérios estéticos, e o crítico tenha o conhecimento necessário e imprescindível para o exercício de seu mister. Assim como existem muitos maus autores que se consideram verdadeiros suprassumos da literatura contemporânea, embora não sejam mais do que meros produtores de lixo impresso (e digital), há muitos maus críticos que se julgam portadores de uma infalibilidade papal, sem qualquer base teórica consistente e válida para emitir seus julgamentos. Limitam-se ao puro e simples achismo e confundem criticar livros com apenas ofender autores.
Apenas depreciar uma obra, sem verdadeiramente estudá-la, ressaltando tão somente seus aspectos negativos, talvez, suspeito, pelo atávico e obscuro prazer de falar mal do trabalho alheio, como uma fofoqueira de janela fala mal dos vizinhos, principalmente para não pensar na miséria e no vazio de sua própria vida, não é crítica literária digna do nome, é apenas puro e simples esnobismo intelectual. E não deixa de ter o seu quê de ridículo, uma vez que a verdadeira crítica literária requer estudo objetivo e reflexão isenta.
A crítica que só deprecia, pode até ser crítica no sentido popular, negativo, da palavra, mas não é realmente crítica, na plena acepção literária do termo. É, no máximo, recalque de escritores gorados.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O Bloco do Eu Sozinho

Eu sempre saio sozinho. Algumas vezes não necessariamente por escolha própria — confesso que há ocasiões em que assim saio apenas por pura e simples falta de companhia. Afinal, não sou exatamente a pessoa mais sociável e extrovertida do mundo; antes pelo contrário, o tédio é o sentimento que parece mais prevalecer entre os indivíduos que eventualmente travam contato comigo, e meus programas não costumam ser exatamente do tipo que agrada a um grande número de pessoas.
Gosto de visitar lugares aos quais a maioria dos fúteis e incultos cidadãos desta árida e infecta terra de apedeutas crônicos e jactanciosos simplesmente prefere não ir. Nada de excepcional ou estranho — apenas museus, bibliotecas, monumentos históricos, galerias de arte, performances dramáticas, etc. Os bárbaros com os quais as injunções da vida me obrigam a conviver não gostam de tais locais. Pelo contrário, abominam completamente o silêncio (sobretudo o silêncio) e a alta cultura predominantes nesses ambientes — justamente o que, para mim, constitui o melhor motivo para visitá-los. Via de regra, preferem lugares repletos de barulhos sem sentido e de multidões tonitruantes, coisas que eu abomino completamente, por minha vez. Mas, entre deixar de conhecer um lugar que me interessa, por falta de companhia, ou conhecê-lo sozinho, escolho sempre a segunda opção. É a única alternativa capaz de me fazer sentir plenamente humano. Ou, pelo menos, menos ausente de mim mesmo.
Confesso que há ocasiões eu que eu preferiria estar acompanhado (bem acompanhado, aliás) em minhas perambulações culturais; seria maravilhoso, creio, ter alguém com quem trocar minhas impressões do passeio — especialmente se esse alguém fosse uma mulher ao mesmo tempo espetacularmente bela e intelectualmente sofisticada, combinação rara, senão completamente inexistente, no mundo atual (mas não convém tecer considerações críticas sobre as mulheres modernas em tempos de totalitarismo ginecocrático).
Particularmente, nos dias que correm, faz-se uma tarefa verdadeiramente hercúlea, para não dizer insolúvel, encontrar alguém minimamente sensível — e inteligente o bastante, seja qual for o gênero — sobretudo neste país asinino e sáfaro, para apreciar e sustentar uma conversa de alto nível sobre arte, cultura e temas afins. Às vezes, penso que talvez o problema esteja em mim (possivelmente está). Noutras, não penso nada, apenas caminho, olho e me calo.
Com o tempo — e a custo, um alto custo — aprendi a gostar de minha própria companhia. É a única que nunca me faltou, a única que permanece e permanecerá presente em minha vida até o fim dos meus dias, neste pálido e turbulento ponto azul pequeno e perdido na periferia do cosmos. 
E, mesmo assim, às vezes, enquanto observo um quadro antigo ou me sento diante de uma vitrine empoeirada, sinto que há algo — alguém — que deveria estar ali também, e não está. Mas já não espero. Nem me desespero. Apenas levo a mim mesmo sempre comigo.

terça-feira, 15 de abril de 2025

A Morte da Arte

A palavra arte foi tão banalizada e vulgarizada em nossos dias, que o próprio sentido do fazer artístico se perdeu e desgastou completamente, e o puro e simples mau gosto foi alçado ao status de critério definidor de obras-primas. Culpa, entre outros, de pseudoartistas como Marcel Duchamp e seu célebre mictório, e Andy Warhol e seus não menos célebres e indigestos rótulos de enlatados. Ambos, em sua ânsia pueril por escandalizar a burguesia — esse espantalho predileto das vanguardas —, deram o tiro certeiro na nuca da tradição artística ocidental, sem sequer oferecer-lhe um epitáfio digno. Como diria Harold Bloom, “a substituição do gênio pelo ressentido é a verdadeira tragédia da cultura moderna”.
Ora, numa era em que tudo é arte, nada é arte. Hoje, qualquer um que pinte um ponto preto numa tela branca, pelo simples fato de expô-lo num museu ou numa galeria, já é automaticamente considerado um “artista”, e exige ser assim chamado, mesmo sem jamais ter chegado sequer aos pés de um Michelângelo ou de um Rafael, ou, mais modernamente, de um Matisse ou de um Picasso. O cânone foi desmantelado — e com ele, para citar novamente Bloom, “a própria noção de valor literário e estético foi jogada ao lixo em nome de uma pluralidade niveladora e insossa”.
Convenhamos, é fácil — ridiculamente fácil — expor um mictório assinado num museu, reproduzir fotos coloridas de Marilyn Monroe em latas de molho de tomate em escala industrial, ou ainda, pendurar uma banana com fita numa parede e considerar tais mistificações estupidificantes como verdadeiras obras-primas da arte contemporânea. Já não pode ser dito o mesmo sobre pintar uma Guernica ou o Juízo Final na abóbada de uma Capela Sistina. O virtuosismo técnico foi substituído pela esperteza conceitual; a elevação espiritual, pelo cinismo mercadológico.
Não nego que haja exceções. Existem artistas contemporâneos que, apesar do ruído ambiente, ainda produzem obras com densidade simbólica, rigor formal e algum vestígio de transcendência. 
Penso, por exemplo, na matéria espessa e histórica de Anselm Kiefer, nas visões oníricas e apocalípticas de Zdzisław Beksiński, na ousadia anacrônica de Odd Nerdrum — verdadeiro herege do tempo presente — ou mesmo no virtuosismo pictórico, ora sublime, ora vacilante, de Gerhard Richter. 
Há ainda aqueles, como Julio Larraz ou Leonardo Pereznieto, que insistem na beleza como forma de resistência, cada qual à sua maneira, contra o império do grotesco e do banal. Mas são raros, raríssimos, e suas vozes se perdem no burburinho histérico de uma multidão de charlatães legitimados por curadores e críticos que, como bem diagnosticou Roger Scruton, “já não buscam o belo, mas o subversivo, o chocante, o politicamente engajado”, mesmo que isso signifique o fim da arte enquanto tal.
A verdadeira arte é superior ao puro e simples entretenimento ou a considerações meramente mercadológicas. Só é arte o que eleva o homem para dentro e além de si mesmo, de sua reles condição animal e imediata. O que não é capaz de sugerir silêncio interior, assombro, verticalidade, não é arte, é ruído, propaganda ou decoração. A arte contemporânea, na sua maior parte, bestializa o homem, apela aos seus instintos mais básicos e primitivos, embrutece-o, desumaniza-o. É apenas — e tão somente — barbarismo e filistinismo, travestidos de vanguarda e originalidade.
Nada que cause espanto, para falar com a devida franqueza. Afinal, o barbarismo e o filistinismo são as regras de ouro do mundo moderno, um mundo que já não exige de seus artistas talento, nem profundidade, nem verdade interior, mas apenas a capacidade de causar comoções superficiais e vender-se bem em leilões regados a champanhe e ignorância. Bem alertou Theodor Adorno, “a indústria cultural transforma a arte em mercadoria e o espírito em estatística”. E o que é o mundo moderno, afinal de contas? Nada muito diferente das fezes enlatadas de Piero Manzoni, oráculo abjeto de uma civilização que confunde provocação com pensamento, excrementos com estética, e ruínas com revolução.

domingo, 13 de abril de 2025

O Silêncio na Catedral

Hoje, ao dobrar a manhã como se fosse uma esquina perdida no tempo, no intervalo do trabalho, soube da morte de Mario Vargas Llosa. Não sei bem o que me atingiu primeiro: se o silêncio que ficou em mim depois da notícia ou a sensação íntima de ter perdido uma espécie de ancestral, não de sangue, naturalmente, mas de espírito. Llosa não era só um escritor; era toda uma geografia literária, um território de palavras fundadas com a mesma solenidade com que se fundam cidades. A sua prosa, que sempre invejei e admirei ao mesmo tempo, sempre limpa, vigorosa, disciplinada como um exército antigo, guardava, em cada frase, o peso de uma herança e a pulsação de uma luta.
Senti sua morte como se se apagasse um daqueles raros faróis em alto mar que ainda sabem o nome das ondas. A literatura, não apenas latino-americana, mas universal, se tornou mais órfã hoje, e eu também. Porque, em silêncio, ainda que nunca o tenha conhecido pessoalmente, reconhecia-o nas caudalosas páginas de seus livros, como se reconhecesse a mim mesmo. Havia nele algo que me lembrava do que eu gostaria de ser: alguém que escreve como quem constrói um templo – com rigor, com paixão, com fé. Llosa, mesmo em seus erros e vaidades, era fiel à ideia de que a literatura importa. Que é possível resistir à vulgaridade do mundo com frases bem colocadas e uma indignação elegante.
Agora que ele se foi, sinto como se houvesse uma pausa no tempo. Uma pausa densa, quase metafísica. É claro que se trata de pura ilusão minha. O mundo segue, como sempre seguiu, indiferente às perdas verdadeiras. Mas dentro de mim, um velho leitor dobra os joelhos. Em silêncio, acende uma vela. E relê, como quem beija pela última vez, as páginas de "A Guerra do Fim do Mundo" e de "Conversa na Catedral", meus livros preferidos de sua autoria, como uma última e singela homenagem de um admirador anônimo. 
Certos autores, quando morrem, não partem sozinhos. Levam, consigo um pedaço de seus leitores. Um pedaço que jamais se reescreverá.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O Último Grande Poeta

Hoje, o mundo amanheceu mais triste e vazio. Leonard Cohen morreu. Cessem todos os cantos! Calem-se todas as vozes! Que importam todas as grandes e pequenas mazelas deste nosso infeliz e atribulado planeta, toda a sua miséria, todo o seu ódio, toda a sua violência, toda a sua vilania, toda a sua aspereza, toda a sua hostilidade, toda a sua hipocrisia, toda a sua hediondez, toda a sua malignidade, que importa tudo isso, enfim, pergunto eu, diante desta cruel e devastadora notícia: Leonard Cohen morreu? O último grande poeta da música se foi. É verdade que ainda temos o bardo Bob Dylan. Mas Cohen era-lhe, ao meu ver, imensamente superior. Penso, inclusive, que o menestrel canadense é que deveria ter ganho o Nobel de Literatura deste ano, ao invés do trovador americano, apesar da opinião em contrário do próprio Cohen. Não pela falta de méritos de Dylan, ele os têm de sobra, mas pela superabundância do talento poético de Cohen, que absolutamente nada fica a dever ao vate de Minnesota.
Para mim, pessoalmente, o mundo perdeu grande parte de seu valor e de sua beleza, no dia de hoje. As canções do aedo de Quebec marcaram várias passagens importantes e inesquecíveis de minha vida secreta, formaram a trilha sonora de grande parte da minha história. Há, também, vários aspectos de sua biografia com os quais eu sempre me identifiquei profundamente; sua depressão crônica, por exemplo (o que, aliás, foi o que primeiro chamou minha atenção para sua obra, quando a descobri, através de uma matéria veiculada pela revista "Veja", por ocasião do lançamento de "Ten New Songs" - em minha opinião, o melhor de todos os seus discos) e também sua predileção pelo uso de metáforas religiosas em suas canções. Agora que ele morreu, sinto como se eu tivesse realmente perdido um amigo, um amigo íntimo e de longa data. Dói, dói muito, dói horrores.
Para tentar aplacar um pouco a minha tristeza, conforto-me - ou pelo menos tento confortar-me - com a vaga e tênue esperança de que Leonard Cohen, ao partir, tenha finalmente encontrado a paz que tanto buscou em vida. Apenas lamento que tenha sido a paz dos cemitérios. 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

The End

Philip Seymour Hoffman (1967-2014).

Sinto como se um tétrico e espesso véu de profunda tristeza e devastador desespero tivesse subitamente descido sobre o mundo, agora que leio, consternado, e ainda incrédulo - e, sem qualquer receio de soar melodramático, com lágrimas nos olhos - a estarrecedora e acachapante notícia do súbito e estúpido falecimento do magnífico e inigualável ator Philip Seymour Hoffman, mundialmente conhecido como o ganhador do Oscar de Melhor Ator de 2005, por sua brilhante e verdadeiramente inesquecível atuação como Truman Capote, o célebre e polêmico autor de "A Sangue Frio", na cinebiografia dirigida por Bennett Miller.
Seu melhor trabalho, porém, pelo menos em minha talvez não tão modesta (na verdade, nada modesta) opinião, foi a representação de Wilson Joel, viúvo de uma suicida cuja carta de adeus ele não tem a coragem de ler, e viciado na inalação de gasolina e em aeromodelismo, no belíssimo e comovente "Com Amor, Liza" (2002), de Todd Louiso. Não podemos esquecer também de sua magistral atuação como Padre Flynn, no magnífico "Dúvida" (2008), de John Patrick Shanley.
Informações preliminares dão conta de que o corpo de Hoffman foi encontrado na banheira do apartamento em que o ator morava, em Greenwich Village, Nova York. Afirmam fontes anônimas que com uma agulha espetada no braço. Segundo um famoso tabloide norte-americano, a causa da morte teria sido overdose, possivelmente de heroína e anfetaminas. Hoffman certa vez reconheceu, publicamente, enfrentar problemas com substâncias ilícitas, e teria sido internado, em maio do ano passado, em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos.
Caso venha a ser confirmado tal diagnóstico, Hoffman será então considerado a mais nova vítima de talento a ter sua vida prematuramente ceifada pelas drogas, mais uma entre inúmeras outras figuras icônicas do cinema e das demais artes que nos deixaram de forma tão estupidamente abrupta e precoce, por culpa desse monstruoso flagelo que pesa sobre nossa época, muitas vezes no auge de suas carreiras, e com toda uma obra ainda por criar. Não citemos nomes. A contagem seria longa, longa e pesarosa, efetuá-la seria o mesmo que contar os corpos espalhados sobre um campo de batalha encharcado de sangue, após o fim de um combate, atividade que, além de inútil, ou útil apenas para estatísticos e historiadores militares, é propícia somente aos que têm estômagos fortes. Não é o meu caso, já que sofro de dispepsia (física e psicológica).
Limitemo-nos a lamentar, e lamentar profundamente esta perda - naturalmente, desnecessário e assaz óbvio dizê-lo, irreparável - e ponhamo-nos a rever suas representações primorosas, para aplacar um pouco a dor que nos está (que pelo menos me está) a castigar o coração. 
É o que vou fazer. Trago "Com Amor, Liza", comigo.

sábado, 23 de julho de 2011

A Vulgaridade da Morte

Amy Winehouse (1983-2011), na adolescência.

 Se há algo de que verdadeiramente ninguém, em sã consciência, pode acusar a morte, é de parcialidade ou esnobismo, pois ela é, indubitavelmente, o mais democrático e igualitário dos fenômenos naturais. Diante dela, todos os seres humanos e demais seres vivos se equivalem, todas as sutis e complexas distinções sociais e vãs hierarquias, que tanto complicam e infernizam este pobre e atribulado mundo em que vivemos, se desvanecem, tornam-se completamente inúteis e desprovidas de qualquer sentido real. Diante dela, a indesejada das gentes (com exceção, naturalmente, dos suicidas), todos se ajoelham e clamam, em vão, por mais alguns segundos de vida. Não importa que sejam reis, imperadores, generais, presidentes, primeiros-ministros, celebridades, subcelebridades, fofoqueiros profissionais que ganham o pão diário com a exploração brutal e explícita das intimidades e fraquezas dessas mesmas celebridades e subcelebridades, comendadores, diplomatas, desembargadores, petistas, tucanos, republicanos, democratas, flamenguistas, vascaínos, atleticanos, coxas brancas, onívoros, carnívoros, vegetarianos, veganos, e até mesmo potentados religiosos e blogueiros que escrevem sobre ela (como este que agora vos fala), a morte nada vê diante de si, a não ser a alma a ser ceifada. Ela não tem absolutamente nenhum preconceito de qualquer espécie, não segue nenhum critério fixo na hora de exercer o seu tétrico e imemorial ofício, tão ou até mais antigo do que o próprio Deus, não há uma ordem específica para ela respeitar em seu trabalho, ela não dá o mínimo valor para coisas tão vãs e fúteis, como idade, sexo, nacionalidade, raça, classe social, e coisas que tais. Todas essas superficialidades mundanas, meramente fictícias e superficiais, mas que tanta aporrinhação e fadiga já trouxeram e ainda trazem à nossa melancólica e desvalida raça humana, desde a aurora da nossa história, para a morte nada significam. Penso que muito poderíamos aprender com ela, no tocante à velha e tempestuosa questão da desigualdade entre os homens. Paradoxalmente, se pensássemos mais sobre a morte, talvez aprendêssemos mais sobre a vida.
Eu penso constantemente sobre ela. Não por morbidez ou tanatolatria, mas justamente por concordar com o meu grande mestre, Montaigne, em que é preciso aprender a morrer para aprender a viver.
Porém, apesar da universalidade atemporal e absolutamente democrática da morte, há diversos momentos em que eu, sinceramente, muito gostaria de que ela fosse um tanto mais discriminatória e seletiva e, portanto, adotasse critérios mais rígidos e claros para o desempenho de sua triste mas necessária função.
Se me fosse lícito tomar a ousadia de lhe fazer sugestões, eu, que nada sou além de apenas mais um mísero e insignificante mortal, ou seja, seu súdito e futura vítima, opinaria que uma boa regra de conduta a ser tomada pela morte, de agora em diante, seria a de não mais levar consigo, crianças. Outro grupo de pessoas que ela deveria se abster de ceifar, seria o das mães. Elas, de fato, deveriam ser imortalizadas, por meio de um decreto divino a ser publicado no Diário Oficial do Céu, com todos os artigos e parágrafos a que o dito decreto teria direito, sem o esquecimento de uma vírgula. Seria o Treze de Maio das mães: "Artigo Primeiro: Fica abolida a morte das mães. Artigo Segundo: Revogam-se todas as disposições em contrário".
 Ainda um terceiro grupo que deveria ser privado do contato com a morte, ao meu ver, seria o dos artistas, seres especiais, talvez divinos, sem embargo de serem criaturas humanas, talvez demasiado humanas, que, com seu talento e suas obras, tornam este remoto e desolado vale de lágrimas, senão um lugar menos lacrimejante e hostil, ao menos, um recanto mais confortável para viver, porque mais compreensível e belo (com exceção de certa arte contemporânea degenerada e grotesca). Não será este, afinal de contas, o real papel da arte, neste mundo: dar um sentido à vida, um sentido que ela não tem, em si mesma, e, consequentemente, tornar um tanto mais leve e assimilável o colossal peso da angústia que cada ser humano carrega consigo, do berço ao túmulo, simplesmente por existir? E não será justamente a consciência da morte que torna a arte (a grande arte) e alguns (os melhores) artistas tão valiosos e importantes para a história cultural da humanidade?
Perguntas para as quais ainda não se encontrou e talvez jamais se encontrem respostas.
Mas já que tocamos no secular e inesgotável tema das relações entre a morte e a arte, permita-me o leitor dizer, ainda, no tocante a este assunto, que não há nada mais cruel e trágico sobre a face da Terra, nesta matéria, ao meu ver, do que a perda abrupta e irreversível de um grande talento artístico, ainda em formação, subitamente cortado, pela raiz, antes de amadurecer por completo, tal como uma flor, ainda por desabrochar, que é repentinamente arrancada do solo pela mão inábil de um jardineiro incompetente.
Foi o que ocorreu com a tão talentosa quão polêmica Amy Winehouse, sublime cantora, a quem muitos veneravam por sua voz magnífica e outros repudiavam por seu comportamento assaz espalhafatoso e autodestrutivo, estupidamente morta, hoje, pelo seu velho e amplamente conhecido vício em álcool. Muito já foi dito e redito a respeito desse evento fatídico, indubitavelmente catastrófico para seus fãs e os que verdadeiramente a amavam, mas, com certeza, logo se verá, imensamente lucrativo para sua gravadora e os demais envolvidos com a comercialização de sua imagem e obra - pois é uma verdade universalmente estabelecida no universo do show business, que nada é mais vantajoso para um artista, do ponto de vista financeiro do termo, naturalmente, do que a morte ainda nos píncaros da fama, ou quando essa mesma fama está a lhe escapar (vide o caso de Michael Jackson). O grande problema, porém, é que, naturalmente, não é o próprio artista que obtém os lucros advindos de seu falecimento. A morte é uma eficiente mas desonesta empresária.
Inúmeros artigos foram e estão a ser escritos sobre a morte e a vida de Amy Winehouse. Eu nada mais poderia fazer aqui, portanto, senão repetir, com outras palavras, tudo que vi, li e ouvi sobre ela, ao longo do dia, desde o seu notório e já amplamente divulgado envolvimento  não apenas com o álcool, mas com várias outras drogas, lícitas e ilícitas (mal que também se abateu sobre outras figuras do meio musical, tão ou até mais célebres e talentosas do que ela), até - terreno assaz fértil para teorias conspiratórias - sua entrada no tão famoso quanto sinistro - e lendário - "Clube dos 27". 
O que mais, então, eu poderia falar sobre Amy Winehouse que já não tenha sido dito, à exaustão, em outras paragens? Talvez apenas que ela foi a infeliz e atormentada protagonista da história trágica de um talento genuíno e inigualável, desperdiçado por um vício monstruoso, vício que, por fim, acabou por irremediavelmente jogá-la no abismo. É um enredo simples, sem grande originalidade, com um desfecho vulgar, vulgaríssimo. E esta é talvez a maior acusação que podemos fazer contra a própria morte, possivelmente a única: ela é vulgar.
O que nunca foi o caso de Amy Winehouse, é claro, nem mesmo nos piores e mais vexaminosos momentos de sua adicção. E não é desses momentos que devemos nos lembrar. É sua poderosa voz que devemos continuar a ouvir. 
                  
          

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

À Guisa de Prefácio

Escrevo estas páginas movido por uma inquietação secreta, que me corrói em silêncio. Não sei nomeá-la com precisão — talvez seja apenas uma espécie de cansaço existencial, talvez um último fio de esperança. Em mim, esses dois sentimentos aparentemente tão díspares e inconciliáveis convivem com frequência, e às vezes parecem ser exatamente a mesma coisa. O fato é que algo me parece deslocado, tanto dentro quanto fora de mim. Como se um fio essencial tivesse sido cortado, deixando o mundo mais rápido, mais acessível, mas também mais raso e mais só.
Não pretendo ensinar nada, nem tenho a autoridade e o conhecimento necessário para fazê-lo. Nem quero consolar a ninguém, ou talvez somente a mim mesmo. Na verdade, escrevo apenas porque o gesto de escrever ainda me parece um dos poucos que não se renderam por completo à utilidade. Escrevo por necessidade íntima, por um impulso quase orgânico, como quem recolhe pedras numa praia deserta sem saber bem o que fazer com elas. Recolho pensamentos, fragmentos, intuições — restos do humano que ainda pulsa sob minha pele, apesar de tudo.
Pois sinto falta de um tipo de criatura humana, se é que algum ela realmente existiu, com a qual ao menos era possível sonhar. Um homem interior, afeito à lentidão filosófica, à dúvida, ao pudor de saber-se limitado. Sinto falta da ideia de que o ser humano não é um produto acabado, nem uma máquina a ser melhorada indefinidamente — mas uma possibilidade frágil, trêmula, cujo valor está justamente em sua incompletude. A técnica moderna nos ensinou a controlar tudo, menos a nós mesmos, e agora ameaça nos ultrapassar e tornar obsoletos. E onde antes havia silêncio fértil, hoje há apenas ruído. Um ruído constante, viscoso, que agora preenche todas as fendas por onde antes a alma costumava respirar.
Talvez o que me falte não seja o passado, mas uma forma de presença. Um modo mais profundo de habitar o mundo e a mim mesmo. A palavra “humanismo” agora me aflora à mente, mas não como bandeira, e sim como vestígio. Uma lembrança vaga de que o homem já foi considerado um fim em si, e não meramente um meio. De que a educação, um dia, visou a formar almas, e não apenas competências profissionais. De que o saber tinha cheiro de biblioteca, peso de manuscrito e o tempo lento da escuta.
Não me iludo com saudosismos tolos: a história não volta atrás. Mas ainda acredito que se pode reabrir certos caminhos interiores, mesmo que entre ruínas. E é por isso que escrevo, para tatear um sentido possível, para resgatar, entre as cinzas do pragmatismo e do desespero contemporâneo, alguma centelha de dignidade humana. Que se chame a isso “humanismo” ou qualquer outra coisa, pouco importa. O essencial é que se trate de um esforço, talvez inútil, mas profundamente necessário, de reconciliação: entre o homem e sua humanidade, entre a razão e o mistério, entre o saber e o silêncio.
Escrevo, enfim, como quem restaura antigas estátuas, com pequenos estilhaços de uma figura maior que não consigo mais ver inteira. Talvez alguém, ao ler-me, também se reconheça em alguma lasca. Ou talvez não. Ainda assim, escrever me parece ser, hoje, um dos poucos gestos de resistência contra a degradação da condição humana nesta era líquida e caótica. 
Eu ainda resisto.