domingo, 29 de dezembro de 2024

A Morte da Arte

A palavra arte foi tão banalizada e vulgarizada em nossos dias, que o próprio sentido do fazer artístico se perdeu e desgastou completamente, e o puro e simples mau gosto foi alçado ao status de critério definidor de obras-primas. Culpa, entre outros, de pseudoartistas como Marcel Duchamp e seu célebre mictório, e Andy Warhol e seus não menos célebres e indigestos rótulos de enlatados. 
Ora, numa era em que tudo é arte, nada é arte. Hoje, qualquer um que pinte um ponto preto numa tela branca, pelo simples fato de expô-lo num museu ou numa galeria, já é automaticamente considerado um "artista", e exige ser assim chamado, mesmo sem jamais ter chegado sequer aos pés de um Michelângelo ou de um Rafael, ou, mais modernamente, de um Matisse ou de um Picasso.
Convenhamos, é fácil, ridiculamente fácil, expor um mictório assinado num museu ou reproduzir fotos coloridas de Marilyn Monroe e de outras celebridades em latas de molho de tomate em escala industrial, ou ainda, pendurar uma banana com uma fita numa parede e considerar tais mistificações estupidificantes como verdadeiras obras-primas da arte contemporânea. Já não pode ser dito o mesmo sobre pintar uma Guernica ou o juízo final em uma Capela Sistina.
A verdadeira arte é superior ao puro e simples entretenimento ou a considerações meramente mercadológicas. Só é arte o que eleva o homem para dentro e além de si mesmo, de sua reles condição animal e imediata. A arte contemporânea, na sua maior parte, bestializa o homem, apela aos seus instintos mais básicos e primitivos, embrutece-o, desumaniza-o, é apenas e tão somente barbarismo e filistinismo. 
Nada que cause espanto, para falar com a devida franqueza. Afinal, o barbarismo e o filistinismo são as regras de ouro do mundo moderno. E o que é o mundo moderno, afinal de contas? Nada muito diferente das fezes enlatadas de Piero Manzoni.

domingo, 22 de dezembro de 2024

O Bloco do Eu Sozinho

Eu sempre saio sozinho. Algumas vezes não necessariamente por escolha própria, confesso que há ocasiões em que assim saio, apenas por pura e simples falta de companhia. Afinal, não sou exatamente a pessoa mais sociável e extrovertida do mundo, antes pelo contrário, o tédio é o sentimento que mais prevalece entre os indivíduos que eventualmente travam contato comigo, e meus programas não costumam ser exatamente do tipo que agrada a um grande número de pessoas. 
Gosto de visitar lugares aos quais a maioria dos fúteis e incultos cidadãos desta árida e infecta terra de apedeutas crônicos e jactanciosos simplesmente prefere não ir. Nada de excepcional ou estranho, apenas museus, bibliotecas, monumentos históricos, galerias de arte, performances dramáticas, etc. Os bárbaros com os quais as injunções da vida me obrigam a conviver não gostam de tais locais. Pelo contrário, abominam completamente o silêncio (sobretudo o silêncio) e a alta cultura predominantes nesses ambientes, justamente o que, para mim, constitui o melhor motivo para visitá-los. Via de regra, preferem lugares repletos de barulhos sem sentido e de multidões tonitruantes, coisas que eu abomino completamente, por minha vez. Mas, entre deixar de conhecer um lugar que me interessa, por falta de companhia, ou conhecê-lo sozinho, escolho sempre a segunda opção. É a única alternativa capaz de me fazer sentir plenamente humano.
É claro que, em pelo menos algumas dessas ocasiões, eu gostaria imensamente de estar acompanhado (bem acompanhado, aliás) em minhas perambulações culturais; seria maravilhoso, creio, ter alguém com quem trocar minhas impressões do passeio - especialmente se esse alguém fosse uma mulher ao mesmo tempo espetacularmente bela e intelectualmente sofisticada, combinação rara, senão completamente inexistente no mundo atual (mas não convém tecer considerações críticas sobre as mulheres modernas em tempos de totalitarismo ginecocrático) e que, para mim, contumaz e impenitente amante das belas artes e do belo sexo, seria nada menos do que perfeita. 
Particularmente, nos dias que correm, faz-se uma tarefa verdadeiramente hercúlea encontrar alguém minimamente sensível, e inteligente o bastante, seja qual for o gênero, sobretudo neste país asinino e sáfaro, para apreciar e sustentar uma conversa de alto nível sobre arte, cultura e temas afins.
Com o tempo, e a custo, um alto custo, aprendi a gostar de minha própria companhia. É a única que nunca me faltou, a única que permanece e permanecerá presente em minha vida até o fim dos meus dias, neste pálido e turbulento ponto azul, pequeno e perdido na periferia do cosmos.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Almas Antigas

É extremamente difícil, talvez até mesmo impossível, para uma alma antiga, como a minha, adaptar-se completamente ao mundo moderno; porque o mundo moderno é, perdoem-me os eventuais apologistas do "progresso", um mundo superficial e vazio, sem qualquer propósito, sem qualquer significado realmente profundo e elevado, e totalmente desprovido de reais e sólidos valores espirituais, morais e intelectuais. É uma embalagem brilhante, porém sem nenhum conteúdo verdadeiramente belo, precioso e humano.
Uma autêntica alma antiga sempre preferirá não apenas dedicar-se, como também envolver-se, somente com o que possa conduzi-la à evolução e à transcendência, e jamais perderá tempo com trivialidades inócuas e desprezíveis; ser-lhe-á sempre intolerável o mero "small talk"; nunca irá a reboque da multidão, mas escolherá sempre seguir firmemente rumo ao aprimoramento e à evolução de si mesma, ainda que ao custo da solidão e do escárnio da grande massa bovinizada, mesmo entre espinhos e sobre brasas, mesmo sendo a última a permanecer em pé, entre as ruínas; ela sempre escolherá travar uma conversa profunda e construtiva, com outras almas antigas, sobre o que verdadeiramente torna uma vida humana digna de ser vivida, como a verdadeira arte e a alta literatura, por exemplo, a gastar seu precioso tempo de vida com diálogos banais e vazios sobre o clima do dia, o resultado do jogo de futebol do último sábado, ou o mais recente caso amoroso da subcelebridade do momento; no âmbito dos relacionamentos, sempre optará por um amor constante e real a uma atração fugaz e quimérica, meramente animal e abjeta; no campo dos estudos, o silêncio plácido e reconfortante da contemplação mística e filosófica no interior levemente sombrio porém acolhedor e sereno de uma biblioteca monacal, ao vozerio caótico e raso das inabitáveis e inumanas megalópoles contemporâneas.
A tragédia das almas antigas é viver em permanente descompasso e desacordo com suas épocas. Seu zeitgeist é sempre o oposto. Nascemos na época errada e vivemos um atroz e triste exílio nesta que se pode perfeitamente considerar como a verdadeira Idade das Trevas.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

O Grau Zero da Crítica

Negativa ou positiva, construtiva ou destrutiva, o importante é que a crítica literária, como a crítica de qualquer outra forma de criação artística, seja fundamentada em sólidos critérios estéticos, e o crítico tenha o conhecimento necessário e imprescindível para o exercício de seu mister. Assim como existem muitos maus autores que se consideram verdadeiros suprassumos da literatura contemporânea, embora não sejam mais do que meros produtores de lixo impresso (e digital), há muitos maus críticos que se julgam portadores de uma infalibilidade papal, sem qualquer base teórica consistente e válida para emitir seus julgamentos. Limitam-se ao puro e simples achismo e confundem criticar livros com apenas ofender autores.
Apenas depreciar uma obra, sem verdadeiramente estudá-la, ressaltando tão somente seus aspectos negativos, talvez, suspeito, pelo atávico e obscuro prazer de falar mal do trabalho alheio, como uma fofoqueira de janela fala mal dos vizinhos, principalmente para não pensar na miséria e no vazio de sua própria vida, não é crítica literária digna do nome, é apenas puro e simples esnobismo intelectual. E não deixa de ter o seu quê de ridículo, uma vez que a verdadeira crítica literária requer estudo objetivo e reflexão isenta.
A crítica que só deprecia, pode até ser crítica no sentido popular, negativo, da palavra, mas não é realmente crítica, na plena acepção literária do termo. É, no máximo, recalque de escritores gorados.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O Último Grande Poeta

Hoje, o mundo amanheceu mais triste e vazio. Leonard Cohen morreu. Cessem todos os cantos! Calem-se todas as vozes! Que importam todas as grandes e pequenas mazelas deste nosso infeliz e atribulado planeta, toda a sua miséria, todo o seu ódio, toda a sua violência, toda a sua vilania, toda a sua aspereza, toda a sua hostilidade, toda a sua hipocrisia, toda a sua hediondez, toda a sua malignidade, que importa tudo isso, enfim, pergunto eu, diante desta cruel e devastadora notícia: Leonard Cohen morreu? O último grande poeta da música se foi. É verdade que ainda temos o bardo Bob Dylan. Mas Cohen era-lhe, ao meu ver, imensamente superior. Penso, inclusive, que o menestrel canadense é que deveria ter ganho o Nobel de Literatura deste ano, ao invés do trovador americano, apesar da opinião em contrário do próprio Cohen. Não pela falta de méritos de Dylan, ele os têm de sobra, mas pela superabundância do talento poético de Cohen, que absolutamente nada fica a dever ao vate de Minnesota.
Para mim, pessoalmente, o mundo perdeu grande parte de seu valor e de sua beleza, no dia de hoje. As canções do aedo de Quebec marcaram várias passagens importantes e inesquecíveis de minha vida secreta, formaram a trilha sonora de grande parte da minha história. Há, também, vários aspectos de sua biografia com os quais eu sempre me identifiquei profundamente; sua depressão crônica, por exemplo (o que, aliás, foi o que primeiro chamou minha atenção para sua obra, quando a descobri, através de uma matéria veiculada pela revista "Veja", por ocasião do lançamento de "Ten New Songs" - em minha opinião, o melhor de todos os seus discos) e também sua predileção pelo uso de metáforas religiosas em suas canções. Agora que ele morreu, sinto como se eu tivesse realmente perdido um amigo, um amigo íntimo e de longa data. Dói, dói muito, dói horrores.
Para tentar aplacar um pouco a minha tristeza, conforto-me - ou pelo menos tento confortar-me - com a vaga e tênue esperança de que Leonard Cohen, ao partir, tenha finalmente encontrado a paz que tanto buscou em vida. Apenas lamento que tenha sido a paz dos cemitérios. 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Sobre Estatísticas

A propósito da recente e algo ridícula controvérsia em torno da indelicada e arrogante resposta da advogada e comentarista política Gabriela Prioli a algumas ingênuas porém justas colocações do youtuber Monark sobre o uso de dados estatísticos em discussões políticas, e também ao ver inúmeros políticos e comentaristas do jogo do poder na imprensa, nas redes sociais e na blogosfera, à esquerda e à direita, acima e abaixo, e também ao centro do espectro ideológico, a usar constantemente estatísticas atrás de estatísticas como argumentos supostamente irrefutáveis uns contra os outros, sobre os mais variados temas, sempre a enunciar, em alto e bom som, percentagens e mais percentagens a propósito disto e daquilo e a tentar posar como gênios oniscientes diante da população, com soluções prontas e supostamente objetivas para todos os grandes problemas nacionais, quando, na verdade, sequer fazem a menor ideia do que estão realmente a dizer, até mesmo inventando números para embasar seus discursos estapafúrdios e incongruentes, com o objetivo de ganhar os votos de eleitores embasbacados e boquiabertos com o seu falso conhecimento da real situação do país, inevitavelmente vem-me à memória o primeiro ensinamento de meu professor de estatística, na faculdade de ciência política e que se tornou meu escudo mental contra manipulações políticas baseadas em estatísticas: 
 - Não acreditem cegamente em estatísticas. Elas nem sempre expressam a realidade. Muitas vezes, fazem exatamente o contrário. Estatísticas podem mentir. Principalmente quando usadas com propósitos políticos.