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Prefácio

Faíscas


Tenho escrito pouco nos últimos tempos, é verdade, mas não por falta de ideias, e sim porque cada vez mais as palavras que brotam de meu cérebro parecem carregar consigo um gosto acre, como se a memória, em vez de me oferecer flores secas para colecionar em cadernos, despejasse em minhas mãos alguma substância instável e ácida, incapaz de se fixar no papel sem ferir a pele e perturbar os sentidos.
Tenho escrito pouco, apenas o bastante para não ser confundido com um cadáver, mas não o suficiente para ser tido com um legítimo homem de letras. E o pior é que, do que sai de minha pena, nada me orgulha: talvez meu inconsciente, hoje, esteja menos interessado em beleza do que em vingança.
Tenho escrito pouco, e mesmo esse pouco parece me espiar do papel, como quem sabe a meu respeito mais do que realmente deveria. Há algo de indecente no que emerge, como se cada palavra guardasse um segredo antigo que eu mesmo esqueci. Mas continuo, porque parar seria confessar que o silêncio também me assusta.
Tenho escrito pouco, e talvez seja esse o modo mais honesto de me manter inteiro ou, ao menos, de preservar as rachaduras em ordem, como quem cataloga ruínas para que não desabem de vez. O problema é que, mesmo no silêncio, as palavras sussurram. Elas se insinuam nas frestas da rotina, espreitam nos gestos mais banais, pairam sobre a superfície das coisas como uma poeira fantasmagórica, que ninguém ousa limpar.
Há dias em que acordo com a sensação de que um livro inteiro se escreveu em mim durante a noite, mas, ao tentar alcançar suas páginas, elas se desfazem; não em branco, mas em manchas, borrões de tinta, que denunciam uma tentativa frustrada de permanência. E, no entanto, insisto. Talvez por orgulho. Talvez porque esse vazio, tão familiar, ainda pareça preferível ao pavor de uma ordem forjada, de uma tranquilidade artificial.
Tenho evitado reler o que escrevi. Não por medo de reconhecer erros, mas pelo temor de encontrar vestígios de mim mesmo que já não me pertencem. Há uma estranheza que cresce entre o eu que escreve e o eu que vive, como dois conhecidos que se cruzam na rua e fingem não se ver, cada um carregando a vergonha de quem já foi íntimo demais do outro.
Sim, tenho escrito pouco. Mas cada palavra que escapa carrega um peso desproporcional, como se arrastasse consigo um fragmento de algo que não quero, mas também não consigo deixar para trás. Ainda assim, continuo a escrever, ainda que pouco Porque, no fundo, suspeito de que seja esse fardo, esse escrever sem consolo, a única forma que encontrei de ainda me sentir verdadeiramente vivo.
Tenho escrito pouco, e mesmo esse pouco parece construir uma espécie de santuário torto, onde me recolho, não para rezar, mas para ouvir os ecos das preces que esqueci de entoar. Às vezes, imagino que cada texto é como uma carta que envio a um destinatário ausente, alguém que talvez tenha morrido, ou pior, tenha mudado tanto, que já não reconheceria minha caligrafia. Escrevo para ninguém, e ainda assim, cada frase carrega o peso de uma confissão. Escrevo, sobretudo, para mim mesmo.
Não me interessa mais a clareza. Busco o que resiste à explicação, o que pulsa entre os vãos da lógica. Há verdades que só se deixam tocar quando vestidas de névoa. E é essa névoa que tento moldar, mesmo sabendo que ela escapará por entre os meus dedos, assim que eu tentar descrevê-la. O papel, coitado, não tem culpa; é só o palco onde a falha se exibe com dignidade.
Tenho escrito pouco, mas aprendi a desconfiar da abundância. As palavras fáceis, os períodos bem estruturados, os textos que se resolvem. tudo isso me parece hoje uma forma de covardia elegante. O que me interessa é o que vacila, o que treme antes de cair, o que grita no escuro, o que olha para o abismo sem temer que ser encarado de volta por ele, o que não encontra abrigo nem em si mesmo. Escrevo como quem tateia dentro de um poço, não esperando achar o fundo, mas apenas algum som que prove que ainda existe o eco de um último homem entre as ruínas.
E se continuo a escrever, não é por esperança. É por uma espécie de fidelidade ao exemplo de Sísifo. Porque, mesmo que a escrita nada me devolva, é dela que me alimento. A ausência, a falha, o quase, tudo isso tem me parecido mais sincero que qualquer forma plena e acabada. A beleza, se ainda existe neste mundo triste, talvez esteja justamente nesse fracasso perseverante de tentar dizê-la.
Tenho escrito pouco, mas quando escrevo, é como se riscasse um fósforo dentro de um quarto fechado há anos, a exemplo de Faulkner, que os acendia em campos noturnos. A luz dura apenas o bastante para revelar o pó suspenso no ar, o contorno gasto dos móveis, as manchas de umidade nas paredes; depois, vem de novo a escuridão, mas agora impregnada de memória. Cada texto é essa faísca breve, insuficiente para aquecer, mas capaz de me lembrar de que ainda há coisas a ver, mesmo que sejam destroços. Há poesia mesmo nos mais sujos e fétidos escombros.
Às vezes, penso que escrever é o modo mais disfarçado de chorar. Um soluço ordenado, dividido em linhas, pontuado por vírgulas e pontos finais, como se fosse possível domar o lamento. Não será toda a literatura um grande desfile de carpideiras? O choro de Proust começou na infância, durou sua vida inteira e se transformou nos sete caudalosos volumes de "Em Busca do Tempo Perdido". 
Outras vezes, escrevo como quem escava, como quem cava um buraco dentro de si para encontrar algo raro, não ouro, não ossos, apenas a certeza de que há real profundidade a atingir. Porque o que mais temo é a ideia de ser raso.
Tenho escrito pouco, e cada vez mais longe dos olhos dos outros. Há nisso um pudor que não sei bem de onde veio. Talvez seja medo de que me leiam como se folheassem um diário alheio deixado propositalmente aberto, como se tudo o que deixei escrito fosse uma armadilha para ser decifrada. Não é. Escrevo para manter alguma coisa em pé dentro de mim. Não procuro testemunhas, mas refúgio.
Os outros também não fazem a menor questão de me ler. E há momentos em que cansa falar sozinho.
Se alguém me perguntasse por que não desisto, e vou plantar batatas, eu talvez não soubesse responder. Mas, entre o silêncio absoluto e esse fio torto de linguagem que às vezes consigo puxar, fico com o fio. Ele talvez não leva a lugar algum, no final das contas, pois não é o mesmo fio de Ariadne. Mas ao menos me dá a ilusão do movimento. E isso, por ora, me basta.

Almas Antigas

É extremamente difícil — talvez até mesmo impossível — para uma alma antiga, como a minha, adaptar-se completamente ao mundo moderno; porque o mundo moderno é, perdoem-me os eventuais apologistas do "progresso", um mundo superficial e vazio, sem qualquer propósito, sem qualquer significado realmente profundo e elevado, e totalmente desprovido de reais e sólidos valores espirituais, morais e intelectuais. É uma embalagem brilhante, porém sem nenhum conteúdo verdadeiramente belo, precioso e humano dentro de si.
Uma autêntica alma antiga sempre preferirá não apenas dedicar-se, como também envolver-se, somente com o que possa conduzi-la à evolução e à transcendência. Jamais perderá tempo com trivialidades inócuas e desprezíveis. Ser-lhe-á sempre intolerável o mero small talk; nunca irá a reboque da multidão, mas escolherá sempre seguir firmemente rumo ao aprimoramento e à elevação de si mesma, ainda que ao custo da solidão e do escárnio da grande massa anestesiada pelas distrações fáceis da época, mesmo entre espinhos e sobre brasas, mesmo sendo a última a permanecer em pé, entre as ruínas.
Ela sempre escolherá travar uma conversa profunda e construtiva com outras almas antigas — e, se me permitem o idealismo, talvez raras almas despertas ainda sobrevivam por aí — sobre o que verdadeiramente torna uma vida humana digna de ser vivida. Preferirá falar sobre a verdadeira arte, a alta literatura, a condição humana, a alma das coisas, do que gastar seu precioso tempo de vida com diálogos banais e vazios sobre o clima do dia, o resultado do jogo de futebol do último sábado, ou o mais recente caso amoroso da subcelebridade do momento.
No âmbito dos relacionamentos, uma alma antiga escolherá sempre um amor constante e real a uma atração fugaz e quimérica, meramente animal e abjeta. No campo dos estudos, buscará o silêncio plácido e reconfortante da contemplação mística e filosófica, no interior levemente sombrio, porém acolhedor e sereno, de uma biblioteca monacal ou de um salão forrado de madeira escura, iluminado apenas pela luz oblíqua que atravessa vitrais antigos. Sentirá mais vida em um volume gasto de Heráclito ou Plotino, ou mesmo de Tácito e Aulo Gélio, do que no frenesi inconsequente dos noticiários. Seu ideal de existência não será encontrado nas avenidas iluminadas pela pressa citadina de todos os dias, mas nos corredores silenciosos onde ainda ecoa, como um sussurro antigo, o latim dos monges e o grego dos poetas trágicos.
A tragédia das almas antigas é viver em permanente descompasso e desacordo com suas épocas. Seu Zeitgeist é sempre o oposto. Nascemos na época errada — ou talvez, se quisermos ser generosos com o destino, na época em que mais se precisa de alguma centelha de lucidez — e vivemos um atroz e triste exílio nesta que se pode perfeitamente considerar, sem exagero, como a verdadeira Idade das Trevas.
À noite, ao som distante de um piano solitário, seguimos lendo à luz de velas tardias, enquanto lá fora, indiferente e ruidosa, a modernidade ruge como uma besta cega. Nosso tempo não é deste tempo.

O Cão Negro

Hoje o soturno e espectral cão negro que habita as profundezas mais recônditas e ignotas de minha mente resolveu sair de sua toca e morder-me. Não foi uma mordida muito grave, pelo contrário, não me arrancou nenhum pedaço, tampouco colocou minha vida em risco; foi apenas o simples e leve roçar de suas pontiagudas e ferinas presas em meu coração. Mas tanto bastou para contaminar minha alma com o vírus da apatia e a bactéria do desencanto e, por consequência, acabar com o meu ânimo, pelo resto do dia.
Há décadas essa sombria e feroz criatura vive a espreitar meus passos, silenciosa e obstinadamente. Para onde quer que eu vá, lá está ela, sempre, a me observar. É sua hedionda e repulsiva figura que se oculta, sorrateira e lúgubre, atrás de cada revés que sofro, atrás de cada negativa que ouço, atrás de cada rasteira que a vida me dá (e tem sido muitas, nos últimos tempos), como que a rir-se, sardonicamente, de meus fracassos, deleitando-se horrores com o meu sofrimento. Ela se esconde entre os troncos podres e calcinados da floresta morta que trago em meu peito, como no clássico poema de Kilkerry, e mistura-se, quase imperceptivelmente, com as frias e nuas sombras das ruínas que restaram de meus sonhos destruídos, apenas a aguardar, pacientemente, a hora certa para me devorar, de uma vez por todas. Conseguirá fazê-lo, algum dia?
Receio que sim. Espero que não.

Petricor

Pesadas nuvens escuras agora estão a se formar no céu, lentamente transformando o dia em noite. O vento aumenta de intensidade e faz as folhas das árvores dançarem com seu sopro forte. Há um nítido presságio de tempestade no ar. Isto, de certa forma, me alegra e conforta. Adoro este tipo de clima. Amo a chuva. Sou apaixonado pelo petricor. Parece que o nome que os estudiosos da mente humana dão à esta idiossincrasia climática é pluviofilia. Sou um pluviófilo crônico e convicto.
Estou sentado em meu quarto. Em breve, chegará o crepúsculo. A escuridão do anoitecer paulatinamente recobre os móveis e os livros. Sinto-me como se estivesse imerso num ambiente de dark academia. Gosto imensamente disso. É exatamente o tipo de ambiente em que nasci para estar. É onde realmente me sinto em paz.
Esta é a atmosfera perfeita para ler “História Narrada ao Crepúsculo”, de Stefan Zweig, “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë, “Drácula”, de Bram Stoker, ou mesmo os contos de Hoffmann ou de Poe, acompanhado por uma generosa xícara de café ou chá, junto de minha estatueta de Atlas.
Acabo de voltar do trabalho. Não foi um dia especialmente cansativo, em termos de volume de demandas – nos sábados, normalmente, o número de suportes operacionais é bastante reduzido, em comparação com o fluxo dos dias úteis. Além do mais, hoje, surpreendentemente, foi um dia assaz interessante, do ponto de vista intelectual; somente os analistas de atendimento estavam presentes na sala da Qualidade, todos os monitores estavam de folga, e, num determinado momento, começou a se desenrolar ali, não sei a que propósito, uma espécie de debate sobre religiões e gêneros sexuais, o que deu azo, malgrado sua absoluta inocuidade, a inúmeras piadas simplesmente divertidíssimas — naturalmente, todas de duplo sentido, e politicamente incorretas — e algumas reflexões, até que bastante pertinentes, sobre políticas identitárias, que ajudou a fazer o tempo passar mais rápido. Mas minha bateria social ficou, como de praxe, completamente esgotada.
Os seres humanos, via de regra, me exaurem. São raros os momentos em que realmente gosto de socializar. Na esmagadora maioria das vezes, sinto um desgaste imenso ao interagir socialmente. Nessas ocasiões, mal posso esperar para estar em casa, longe do barulho e do tumulto do mundo.
Porém, há dias em que, nem mesmo em casa, tenho verdadeiramente sossego. Por exemplo, neste momento, ouço os gritos de minha mãe e de minha irmã e a algazarra das crianças, incluindo meu filho, do lado de fora da porta do meu quarto. Os moradores desta casa simplesmente não conhecem o conceito de silêncio. Nem o de privacidade.
Normalmente, isto me exasperaria profundamente, e poderia até me levar ao extremo de ter um ataque de fúria. Hoje, no entanto, sinto-me singularmente sereno e em paz comigo mesmo e, inacreditavelmente, com os demais homens que habitam este pálido e turbulento ponto azul.
Com toda a certeza, por influência do clima.

O Grau Zero da Crítica

Negativa ou positiva, construtiva ou destrutiva, o importante é que a crítica literária, como a crítica de qualquer outra forma de criação artística, seja fundamentada em sólidos critérios estéticos, e o crítico tenha o conhecimento necessário e imprescindível para o exercício de seu mister. Assim como existem muitos maus autores que se consideram verdadeiros suprassumos da literatura contemporânea, embora não sejam mais do que meros produtores de lixo impresso (e digital), há muitos maus críticos que se julgam portadores de uma infalibilidade papal, sem qualquer base teórica consistente e válida para emitir seus julgamentos. Limitam-se ao puro e simples achismo e confundem criticar livros com apenas ofender autores.
Apenas depreciar uma obra, sem verdadeiramente estudá-la, ressaltando tão somente seus aspectos negativos, talvez, suspeito, pelo atávico e obscuro prazer de falar mal do trabalho alheio, como uma fofoqueira de janela fala mal dos vizinhos, principalmente para não pensar na miséria e no vazio de sua própria vida, não é crítica literária digna do nome, é apenas puro e simples esnobismo intelectual. E não deixa de ter o seu quê de ridículo, uma vez que a verdadeira crítica literária requer estudo objetivo e reflexão isenta.
A crítica que só deprecia, pode até ser crítica no sentido popular, negativo, da palavra, mas não é realmente Crítica, na plena acepção literária do termo. É, no máximo, recalque de escritores gorados.

O Bloco do Eu Sozinho

Eu sempre saio sozinho. Algumas vezes não necessariamente por escolha própria. Confesso que há ocasiões em que assim saio apenas por pura e simples falta de outra companhia além da minha. Afinal, não sou exatamente a pessoa mais sociável e extrovertida do mundo; antes pelo contrário, o tédio é o sentimento que parece prevalecer entre os raros indivíduos que eventualmente travam contato comigo, e meus programas não costumam ser exatamente do tipo que agrada a um grande número de pessoas.
Gosto de visitar lugares aos quais a maioria dos fúteis e incultos cidadãos desta árida e infecta terra de apedeutas crônicos e jactanciosos simplesmente prefere não ir. Nada de excepcional ou estranho, apenas museus, bibliotecas, monumentos históricos, galerias de arte, performances dramáticas, etc. Os bárbaros com os quais as injunções da vida me obrigam a conviver não gostam de tais locais. Pelo contrário, abominam completamente o silêncio (sobretudo o silêncio) e a alta cultura predominantes nesses ambientes, justamente o que, para mim, constitui o melhor motivo para visitá-los. Via de regra, preferem os lugares repletos de barulhos sem sentido, as multidões tonitruantes e os ambientes degradantes que abundam no mundo moderno, coisas que eu abomino completamente, por minha vez. Mas, entre deixar de conhecer um local que me interessa, por falta de companhia, ou conhecê-lo sozinho, escolho sempre a segunda opção. É a única alternativa verdadeiramente capaz de me fazer sentir plenamente humano. Ou menos ausente de mim mesmo.
Minha solidão não é somente física; é existencial. É uma parte indissociável da minha personalidade. Nasceu comigo e comigo morrerá. Mesmo cercado de seres humanos, inclusive quando os seres humanos em questão são indivíduos que amo, como o meu filho, por exemplo, sinto-me o mais solitário dos homens que habitam este planeta.
Reconheço que há ocasiões em que eu preferiria estar acompanhado (bem acompanhado, aliás) em minhas perambulações culturais; seria maravilhoso, creio, ter alguém com quem trocar minhas impressões do passeio; especialmente se esse alguém fosse uma mulher, ao mesmo tempo, espetacularmente bela e intelectualmente sofisticada, combinação rara, aliás, senão completamente inexistente, no mundo atual. Mas não convém tecer considerações críticas sobre as mulheres modernas em tempos de totalitarismo ginecocrático.
Particularmente, nos dias que correm, faz-se uma tarefa verdadeiramente hercúlea, para não dizer insolúvel, encontrar alguém minimamente sensível e inteligente o bastante, seja qual for o gênero, sobretudo neste país asinino e sáfaro, para apreciar e sustentar uma conversa de alto nível sobre arte, cultura e temas afins. Às vezes, penso que talvez o problema esteja em mim (possivelmente está). Noutras, não penso nada, apenas olho, abano a cabeça, dou de ombros e sigo meu caminho solitário. 
Com o tempo e, admito, a custo, um alto custo, aprendi a gostar de minha própria companhia. É a única que nunca me faltou, a única que permanece e permanecerá presente em minha vida, até o fim dos meus dias neste pálido e turbulento ponto azul perdido na periferia do cosmos.

A Morte da Arte

A palavra arte foi tão banalizada e vulgarizada em nossos dias, que o próprio sentido do fazer artístico se perdeu e desgastou completamente, e o puro e simples mau gosto foi alçado ao status de critério definidor de obras-primas. Culpa, entre outros, de pseudoartistas como Marcel Duchamp e seu célebre mictório, e Andy Warhol e seus não menos célebres e indigestos rótulos de enlatados. Ambos, em sua ânsia pueril por escandalizar a burguesia — esse espantalho predileto das vanguardas —, deram o tiro certeiro na nuca da tradição artística ocidental, sem sequer oferecer-lhe um epitáfio digno. Como diria Harold Bloom, “a substituição do gênio pelo ressentido é a verdadeira tragédia da cultura moderna”.
Ora, numa era em que tudo é arte, nada é arte. Hoje, qualquer um que pinte um ponto preto numa tela branca, pelo simples fato de expô-lo num museu ou numa galeria, já é automaticamente considerado um “artista”, e exige ser assim chamado, mesmo sem jamais ter chegado sequer aos pés de um Michelângelo ou de um Rafael, ou, mais modernamente, de um Matisse ou de um Picasso. O cânone foi desmantelado — e com ele, para citar novamente Bloom, “a própria noção de valor literário e estético foi jogada ao lixo em nome de uma pluralidade niveladora e insossa”.
Convenhamos, é fácil — ridiculamente fácil — expor um mictório assinado num museu, reproduzir fotos coloridas de Marilyn Monroe em latas de molho de tomate em escala industrial, ou ainda, pendurar uma banana com fita numa parede e considerar tais mistificações estupidificantes como verdadeiras obras-primas da arte contemporânea. Já não pode ser dito o mesmo sobre pintar uma Guernica ou o Juízo Final na abóbada de uma Capela Sistina. O virtuosismo técnico foi substituído pela esperteza conceitual; a elevação espiritual, pelo cinismo mercadológico.
Não nego que haja exceções. Existem artistas contemporâneos que, apesar do ruído ambiente, ainda produzem obras com densidade simbólica, rigor formal e algum vestígio de transcendência. 
Penso, por exemplo, na matéria espessa e histórica de Anselm Kiefer, nas visões oníricas e apocalípticas de Zdzisław Beksiński, na ousadia anacrônica de Odd Nerdrum — verdadeiro herege do tempo presente — ou mesmo no virtuosismo pictórico, ora sublime, ora vacilante, de Gerhard Richter. 
Há ainda aqueles, como Julio Larraz ou Leonardo Pereznieto, que insistem na beleza como forma de resistência, cada qual à sua maneira, contra o império do grotesco e do banal. Mas são raros, raríssimos, e suas vozes se perdem no burburinho histérico de uma multidão de charlatães legitimados por curadores e críticos que, como bem diagnosticou Roger Scruton, “já não buscam o belo, mas o subversivo, o chocante, o politicamente engajado”, mesmo que isso signifique o fim da arte enquanto tal.
A verdadeira arte é superior ao puro e simples entretenimento ou a considerações meramente mercadológicas. Só é arte o que eleva o homem para dentro e além de si mesmo, de sua reles condição animal e imediata. O que não é capaz de sugerir silêncio interior, assombro, verticalidade, não é arte, é ruído, propaganda ou decoração. A arte contemporânea, na sua maior parte, bestializa o homem, apela aos seus instintos mais básicos e primitivos, embrutece-o, desumaniza-o. É apenas — e tão somente — barbarismo e filistinismo, travestidos de vanguarda e originalidade.
Nada que cause espanto, para falar com a devida franqueza. Afinal, o barbarismo e o filistinismo são as regras de ouro do mundo moderno, um mundo que já não exige de seus artistas talento, nem profundidade, nem verdade interior, mas apenas a capacidade de causar comoções superficiais e vender-se bem em leilões regados a champanhe e ignorância. Bem alertou Theodor Adorno, “a indústria cultural transforma a arte em mercadoria e o espírito em estatística”. E o que é o mundo moderno, afinal de contas? Nada muito diferente das fezes enlatadas de Piero Manzoni, oráculo abjeto de uma civilização que confunde provocação com pensamento, excrementos com estética, e ruínas com revolução.

Prefácio

Escrevo estas páginas movido por uma inquietação secreta, que me corrói em silêncio. Não sei nomeá-la com precisão — talvez seja apenas uma espécie de cansaço existencial, talvez um último fio de esperança. Em mim, esses dois sentimentos aparentemente tão díspares e inconciliáveis convivem com frequência, e às vezes parecem ser exatamente a mesma coisa. O fato é que algo me parece deslocado, tanto dentro quanto fora de mim. Como se um fio essencial tivesse sido cortado, deixando o mundo mais rápido, mais acessível, mas também mais raso e mais só.
Não pretendo ensinar nada, nem tenho a autoridade e o conhecimento necessário para fazê-lo. Nem quero consolar a ninguém, ou talvez somente a mim mesmo. Na verdade, escrevo apenas porque o gesto de escrever ainda me parece um dos poucos que não se renderam por completo à utilidade. Escrevo por necessidade íntima, por um impulso quase orgânico, como quem recolhe pedras numa praia deserta sem saber bem o que fazer com elas. Recolho pensamentos, fragmentos, intuições — restos do humano que ainda pulsa sob minha pele, apesar de tudo.
Pois sinto falta de um tipo de criatura humana, se é que algum ela realmente existiu, com a qual ao menos era possível sonhar. Um homem interior, afeito à lentidão filosófica, à dúvida, ao pudor de saber-se limitado. Sinto falta da ideia de que o ser humano não é um produto acabado, nem uma máquina a ser melhorada indefinidamente — mas uma possibilidade frágil, trêmula, cujo valor está justamente em sua incompletude. A técnica moderna nos ensinou a controlar tudo, menos a nós mesmos, e agora ameaça nos ultrapassar e tornar obsoletos. E onde antes havia silêncio fértil, hoje há apenas ruído. Um ruído constante, viscoso, que agora preenche todas as fendas por onde antes a alma costumava respirar.
Talvez o que me falte não seja o passado, mas uma forma de presença. Um modo mais profundo de habitar o mundo e a mim mesmo. A palavra “humanismo” agora me aflora à mente, mas não como bandeira, e sim como vestígio. Uma lembrança vaga de que o homem já foi considerado um fim em si, e não meramente um meio. De que a educação, um dia, visou a formar almas, e não apenas competências profissionais. De que o saber tinha cheiro de biblioteca, peso de manuscrito e o tempo lento da escuta.
Não me iludo com saudosismos tolos: a história não volta atrás. Mas ainda acredito que se pode reabrir certos caminhos interiores, mesmo que entre ruínas. E é por isso que escrevo, para tatear um sentido possível, para resgatar, entre as cinzas do pragmatismo e do desespero contemporâneo, alguma centelha de dignidade humana. Que se chame a isso “humanismo” ou qualquer outra coisa, pouco importa. O essencial é que se trate de um esforço, talvez inútil, mas profundamente necessário, de reconciliação: entre o homem e sua humanidade, entre a razão e o mistério, entre o saber e o silêncio.
Escrevo, enfim, como quem restaura antigas estátuas, com pequenos estilhaços de uma figura maior que não consigo mais ver inteira. Talvez alguém, ao ler-me, também se reconheça em alguma lasca. Ou talvez não. Ainda assim, escrever me parece ser, hoje, um dos poucos gestos de resistência contra a degradação da condição humana nesta era líquida e caótica. 
Eu ainda resisto.