quinta-feira, 1 de julho de 2021

O Cão Negro

 
Hoje o soturno e espectral cão negro que há longos anos habita as profundezas mais recônditas e ignotas de minha mente resolveu sair de sua toca e morder-me. Não foi uma mordida muito grave, pelo contrário, não me arrancou nenhum pedaço, foi apenas o leve e simples roçar de suas pontiagudas e ferinas presas em meu coração. Mas tanto bastou para contaminar minha alma com o vírus da apatia e a bactéria do desencanto, e, por consequência, acabar com meu ânimo, pelo resto do dia.
Há décadas, essa sombria e feroz criatura vive a espreitar meus passos, silenciosa e obstinadamente. Para onde quer que eu vá, lá está ela, sempre, a me observar. É sua hedionda e repulsiva figura que se oculta, sorrateira e lúgubre, atrás de cada revés que sofro, atrás de cada negativa que ouço, atrás de cada rasteira que a vida me dá (e tem sido muitas, nos últimos tempos), como que a rir-se, sardonicamente, de meus fracassos, deleitando-se horrores com o meu sofrimento. Ela se esconde entre os troncos podres e calcinados da floresta morta que há tempos trago em meu peito, como no clássico poema de Kilkerry, e mistura-se, quase imperceptivelmente, com as frias e nuas sombras das ruínas que restaram de meus sonhos destruídos, apenas a aguardar, pacientemente, a hora certa para me devorar, de uma vez por todas.
Conseguirá fazê-lo, algum dia? Receio que sim, espero que não.

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