segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

O Senão do Blog


Começo a pensar seriamente na possibilidade, a cada dia mais forte e tentadora, de finalmente desistir de continuar a escrever neste blog. Talvez este seja o último artigo que nele escrevo. Não é que ele me canse, pelo contrário, eu não tenho muito o que fazer em meu tempo livre, estou desempregado, não tenho mais uma esposa a quem agradar (ela já me abandonou há muito tempo), meu filho está cada vez maior e mais independente e praticamente não quer mais saber de seu pai, somente de seus amigos do bairro e de seus jogos eletrônicos (natural, porém triste), o tédio domina meus dias e este blog, além dos livros, preenche minhas horas vazias. Mas confesso que estou um tanto quanto cansado, isto sim, de escrever para ninguém. Não, não preciso que me digam o contrário, isto se houver quem o diga, não tenho ilusões a respeito, vejo as estatísticas do blog e sei que ninguém me lê. Nem meus parentes mais próximos. Nem meus amigos mais íntimos. Amigos? Eu, por acaso, os tenho? Alguma vez os tive? Sobretudo íntimos?
Até algum tempo atrás, eu me contentava perfeitamente em escrever apenas para mim mesmo, numa espécie de sumamente arrogante e soberbo onanismo intelectual. Nunca ambicionei ser popular e sempre votei o mais profundo e colossal desprezo à massa vil e ignara. Mas, francamente, chega uma hora em que dançar sozinho na pista já não satisfaz ao solitário dançarino, é preciso ter alguém com quem realizar uma contradança. De que vale a um ator representar sua peça para uma plateia inexistente? Ou a um músico tocar seu instrumento para uma assembleia de surdos? Ou a um pintor expor sua tela numa galeria vazia? Estou perfeitamente ciente de que este blog não é exatamente uma obra de arte, seja qual for o gênero artístico em que ele possa quixotescamente tentar se encaixar, infinitamente longe disso, mas, ainda assim, creio que a analogia é válida. Pelo menos, é a melhor forma que encontrei de expressar meus sentimentos neste momento. 
Quando criei este blog, não tinha, é claro, como ainda não tenho, aliás, a ilusão de alcançar um grande sucesso de público ou crítica através dele. Afinal, os assuntos sobre os quais eu normalmente escrevo nestas páginas, e o estilo com que nelas escrevo, não são propícios a atrair os leitores contemporâneos, bem o sei. Os temas que aqui ventilo estão longe, muito longe, de interessar aos homens de hoje, via de regra, regidos, na sua esmagadora maioria, pela férrea e imperiosa lei do "time is money". São temas que exigem mais do que cinco minutos de reflexão, mais do que uma olhadela rápida e superficial, como geralmente ocorre nas redes sociais, mais, com certeza, do que os poucos segundos de leitura e de análise de que dispõem os humanos modernos em sua perpétua faina atrás de poder e dinheiro, sempre apressados, ofegantes e apreensivos, constantemente com os olhos fixos no relógio, sequiosos de lucro e apavorados pelo onipresente risco de perder seu status e o pão de cada dia. São, em suma, temas que pedem uma leitura atenta, vagarosa, pormenorizada. Uma leitura ruminante, ao modo machadiano do termo. E para ruminar, é preciso tempo. E coragem, também. Pois não é, absolutamente, uma tarefa fácil, embora seja, ao fim e ao cabo, assaz gratificante e intelectualmente enriquecedora.
Ruminar é um hábito que cultivo desde longa data. Neste quesito, sigo rigorosamente o exemplo de meu venerável e inigualável mestre Machado de Assis:

"Ninguém sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a ideia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a ideia fica íntegra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também".
Mas não ter sequer um único leitor, além de mim, é uma tortura maior do que posso verdadeiramente suportar.
Com raras exceções, que muito me custam, não costumo escrever sobre assuntos modernos ou os temas do dia. Não escrevo pautado pela mídia, especialmente a mainstream. No dia de hoje, por exemplo, o país está um caos, mas isso não é tema para este blog. Ademais, o que poderia eu dizer a respeito, que já não tenha sido dito e redito, à exaustão, desde ontem, pela quase totalidade da classe bem pensante (ou bem falante) brasileira? É óbvio que também eu sou pela democracia e contra o totalitarismo, defensor da civilidade e adversário da barbárie. Mas cabe perguntar: que democracia? que barbárie? quem são os verdadeiros democratas? quem são os verdadeiros bárbaros? Afirmam as escandalizadas e barulhentas vestais da intelligentsia tupiniquim que a democracia nacional está sob ataque. Será? Tenho sérias dúvidas sobre se ainda podemos considerar o Brasil um país realmente democrático. Mas, repito: isso não é tema para este blog. 
Prossigamos com o que estávamos anteriormente a dizer, portanto.
Também não costumo frequentar redes sociais ou fóruns de discussões na internet, embora, por conta de injunções profissionais e familiares, tenha criado um perfil no Facebook, hoje praticamente às moscas, e tido outro no finado Orkut. Posso perfeitamente dizer, sem medo de pecar pelo exagero, que este blog é, praticamente, o meu único canal de comunicação com o mundo exterior ao meu imediato círculo social. Para falar com franqueza, o mundo moderno pouco me interessa. Ou melhor, interessa-me apenas na medida em que me afeta diretamente, pois também eu sou filho deste século medíocre, embora bastardo. Bastardo e inglório. Não tenho um sobrenome ilustre, meus antepassados não figuram na árvore genealógica de nenhuma poderosa oligarquia, não nasci em berço de ouro, não sou herdeiro de nenhum império, não uso perfumes importados, nem, por suposto, black tie, e ando de ônibus não por ser um contumaz e ferrenho defensor do meio ambiente e da redução do número de automóveis em nossas desumanas e inabitáveis metrópoles congestionadas, mas pelo motivo, muito mais prosaico e nada edificante, de simplesmente não possuir um carro. Em suma, como na clássica canção de Belchior:

"Eu sou apenas um rapaz / latino-americano / sem dinheiro no banco / sem parentes importantes / e vindo do interior".
Com exceção de ter vindo do interior, pois nasci na capital de meu estado.
Talvez meu pouco interesse pelo chamado mundo moderno seja justamente o que me separa da quase totalidade das pessoas ao meu redor e erige entre nós uma imensa e impenetrável muralha intelectual e psicológica, feita de incompreensão e estranhamento. A propósito, disse José Luís Nunes Martins:

"Os muros de solidão que crescem em torno de nós, sempre que desistimos de ter fé, são como muralhas de castelo que nos impossibilitam de ser o que realmente somos, que impedem que o nosso amor chegue aos outros... abortando-nos".
Mas a culpa será minha ou do mundo? Em grande medida, minha, é óbvio, mas também deste que é um mundo sem alma, demasiado turbulento, caótico e espalhafatoso, uma embalagem vazia, muito bonita e atraente, mas descartável, um mundo isento de dignidade e completamente desprovido de quaisquer valores mais sólidos e elevados do que os meramente materiais.

"Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicômio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação".
São palavras de Fernando Pessoa, e eu concordo integralmente.
Prefiro orientar meus pensamentos e, em grande medida, também meus sentimentos, para mundos mais recuados no tempo e no espaço, mundos onde um ser humano ainda poderia ser, e era efetivamente, mais do que um simples instrumento de trabalho para o enriquecimento de outros, mais do que uma mera roda numa engrenagem, mais do que uma reles ferramenta numa linha de produção, mais, enfim, do que um número numa tela de computador.
Nasci no século errado. Ou cedo demais ou tarde demais. Não me sinto em casa dentro de minha própria pele. Moro numa casa alugada (a época atual) e meu senhorio (Deus ou o destino) vive a cobrar-me os aluguéis atrasados.
Exilado numa terra fria e hostil. Um peixe fora da água. Um corpo estranho no grande organismo universal. É exatamente como eu me sinto na maior parte do tempo.
Há também o meu orgulho a pôr na balança. Tenho um gigantesco e profundo amor próprio, na maior parte do tempo, não correspondido, e ele me impede de recorrer a certos estratagemas, que já vi outros blogueiros adotarem para aumentar o público de seus blogs, e que a mim me sabem simplesmente como grotescas, vis e abjetas trapaças. Também detesto expor-me e expor os meus textos ao escrutínio público da mesma forma com que um açougueiro expõe uma peça de carne em seu balcão. Nada me repugna e enoja mais do que mendigar a atenção alheia. Não sou palhaço (embora, inúmeras vezes, tenha sido tratado como tal, por igualmente inúmeras pessoas, ao longo da minha vida) e não tenho vocação para o picadeiro.
Mas não vou mentir, é meu compromisso de honra só dizer a verdade neste blog (pelo menos a minha verdade), é claro que eu gostaria de ser lido. Gosto da solitude, mas não é bom ficar só o tempo todo, a própria Bíblia o diz, porém, a solidão sempre foi minha mais fiel e dedicada companheira. Carcereira talvez fosse uma definição melhor. Ela nunca me abandonou. Está sempre comigo e em volta de mim e segue em meu encalço para onde quer que eu vá. Faça eu o que fizer para tentar afastá-la, todo esforço é inútil, todo clamor é vão, toda lágrima é ineficaz, ela permanece irremediavelmente incrustada em meu coração e nas mais recônditas e ignotas profundezas da minha alma e não dá qualquer sinal de querer me libertar tão cedo de suas garras frias e soturnas.
Mas talvez eu esteja sendo um tanto quanto injusto para com ela, quem sabe? Afinal de contas, a solidão já me serviu muito e de muitas formas. Já me livrou de uma série de maçadas ao longo da vida. A tal ponto, que posso quase fazer minhas as seguintes palavras de Eugénio de Andrade:

"A solidão não (me) é forçosamente negativa, pelo contrário, até me parece um privilégio. Talvez a minha solidão seja excessiva, mas eu detestei sempre as coisas mundanas. Estar com as pessoas apenas para gastar as horas é-me insuportável".

Palavras que, de certo modo, fazem eco com estas outras de Henry Miller, e que poderiam, descontado o ateísmo explícito (sim, eu acredito em Deus, embora tenha sérios problemas de relacionamento com ele), ter sido escritas por mim, numa tarde de inspirada e revoltada melancolia:

"Sou um homem livre – e preciso da minha liberdade. Preciso estar sozinho. Preciso meditar na minha vergonha e no (meu) desespero em retiro; preciso da luz do sol e das pedras do calçamento das ruas sem companheiros, sem conversação, frente a frente comigo, apenas com a música do meu coração como companhia. Que querem vocês de mim? Quando tenho algo a dizer, ponho-o em letra de forma. Quando tenho algo a dar, dou-o. Sua curiosidade indiscreta faz virar meu estômago! Seus cumprimentos humilham-me! Seu chá envenena-me! Nada devo a ninguém. Seria responsável somente perante Deus – se Ele existisse"!
Aspiro a ser escritor e a solidão é de crucial importância para o exercício da escrita. O mais verdadeiro truísmo que existe é o fato de que escrever é um ato profundamente solitário e introspectivo. Como bem disse Marguerite Duras:

"Nunca ninguém escreveu a duas vozes. Foi possível cantar a duas vozes, ou fazer música também, e jogar tênis, mas escrever, não. Nunca".
Escrever não é algo tão fácil e simples quanto parece e muitos julgam ser. Já houve pessoas próximas a mim às quais confessei meu sonho de escrever e que riram às gargalhadas ao ouvir-me, dizendo-me que qualquer um pode ser escritor (claro, qualquer um pode ser um Machado de Assis, ou um Goethe, ou mesmo um Shakespeare!) e aconselhando-me, entre suas risadas, e não sem uma sutil e paradoxal mescla de pena e desprezo, a fazer algo de realmente útil e lucrativo com a minha vida. Falam-me para trabalhar. Mal sabem elas que escrever dá um enorme trabalho. Eu não conheço ofício mais complexo e hercúleo, nem mais prazeroso e gratificante. Verdade que costuma ser muito mal remunerado, sobretudo nestas asininas plagas tropicais, mas nem só de dinheiro vive o homem. 
Escrever é uma necessidade vital para mim. Pode parecer exagero - e tudo o que eu mais receio, quando escrevo, é soar enfático ou hiperbólico - mas a verdade é que eu só me sinto plenamente vivo quando estou a escrever. O resto do tempo sinto-me como um sonâmbulo entre os que estão em vigília, um zumbi entre os vivos.
Escrever para mim é tão ou até mais importante do que respirar. E, para um asmático, como eu, fazer uma confissão como esta, é dizer muito, é dizer quase tudo.
É por isto que ainda insisto em escrever. Mesmo que ninguém me leia além de mim mesmo.
O que me consola da minha solidão neste blog é pensar que talvez um dia, quem sabe, algum leitor desocupado e inteligente, que esteja a navegar a esmo pela internet, visite esta página por puro e simples acidente de percurso, e, ato contínuo, comece a ler as palavras iniciais desta postagem, por mera curiosidade a princípio, mas depois, conforme avance na leitura, acabe, mera hipótese, por se deixar envolver e até se apaixonar pelo texto e encontrar através dele uma alma irmã; pode ser que o texto desperte em seu coração, alguma estranha e enigmática ressonância espiritual com o autor e toque em alguma tecla sensível de seu ser, algo que o faça sentir-se, de modo inexplicável, como que uno e integrado com o pensamento e o espírito do homem que o escreveu. E o que mais um escritor, no pleno sentido do termo, ou mesmo, como no meu caso, um simples blogueiro, pode desejar, senão isto, um leitor apaixonado, com quem possa compartilhar, ao menos por um breve momento, sua alma e seu coração, a despeito de detalhes reles e comezinhos como o tempo e a distância, e assim aliviar, ao menos um pouco, a imensa solidão e tristeza com que Deus circundou tão abundante e impiedosamente a existência humana?
Nesse dia, pode ser que eu já tenha deixado de existir há muito tempo. Mas minhas palavras aqui ficarão - por quanto tempo, ai de mim? - como os últimos e inequívocos sinais de que houve um tempo em que eu caminhei sobre a Terra e lancei algumas garatujas esparsas nestas páginas virtuais. E talvez ainda possam dar algum fruto, como inspirar um grande livro, por exemplo, E então terá finalmente valido a pena um dia ter escrito este blog. Laboremus

sábado, 7 de janeiro de 2023

Almas Antigas


É e muito provavelmente sempre será extremamente difícil para uma alma antiga, como eu, adaptar-se completamente ao mundo moderno; porque o mundo moderno é, perdoem-me os eventuais leitores progressistas, um mundo superficial e vazio, sem qualquer propósito, sem qualquer significado realmente profundo e elevado, e totalmente desprovido de reais e sólidos valores espirituais, morais e intelectuais. 
Ora, uma verdadeira alma antiga sempre preferirá não apenas dedicar-se como também envolver-se somente com o que possa conduzi-la à evolução e à transcendência, não à pura e simples perda de tempo com trivialidades inócuas e desprezíveis; nunca irá a reboque da multidão, mas escolherá sempre seguir o seu próprio caminho rumo ao aprimoramento e à evolução de si mesma, ainda que ao custo da solidão e do escárnio da massa vil e ignorante, mesmo entre espinhos e sobre brasas, mesmo sendo a última a permanecer em pé entre as ruínas; sempre escolherá travar uma conversa profunda e construtiva sobre o que verdadeiramente torna uma vida humana digna de ser vivida, como a grande arte e a alta literatura, por exemplo, a gastar seu precioso tempo de vida com diálogos banais e vazios sobre o clima do dia, o resultado do jogo de futebol do último sábado, ou o mais recente caso amoroso da subcelebridade do momento; no âmbito dos relacionamentos, sempre optará por um amor constante e real a uma atração fugaz e quimérica, meramente animal e abjeta; no campo dos estudos, o silêncio plácido e reconfortante da contemplação mística e filosófica no interior levemente sombrio porém acolhedor e sereno de uma biblioteca monacal, ao vozerio caótico e raso das inabitáveis e inumanas megalópoles contemporâneas.
A tragédia das almas antigas é viver em permanente descompasso e desacordo com suas épocas. Seu zeitgeist é sempre o oposto. Nascemos na época errada e vivemos um atroz e triste exílio nesta que se pode perfeitamente considerar como a verdadeira Idade das Trevas.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O Bloco do Eu Sozinho

  
Eu sempre saio sozinho. Nem sempre por escolha própria, é verdade; confesso que há ocasiões em que assim saio apenas por pura e simples falta de companhia. Não sou exatamente a pessoa mais sociável e extrovertida do mundo, e meus programas não costumam ser do tipo que agrada a um grande número de pessoas. O fato é que gosto de visitar lugares aos quais a maioria dos lânguidos e incultos cidadãos desta tórrida e árida terra de apedeutas crônicos simplesmente prefere não ir. Nada de excepcional ou estranho, apenas museus, bibliotecas, monumentos históricos, galerias de arte, performances dramáticas, etc. Os bárbaros e filisteus com os quais as injunções da vida me obrigam a conviver todos os dias não gostam de tais locais. Pelo contrário, eles abominam completamente o silêncio (sobretudo o silêncio) e a cultura predominantes nesses ambientes, justamente o que para mim constitui o melhor motivo para visitá-los. Via de regra, preferem lugares repletos de barulho e de multidões tonitruantes, coisas que eu abomino completamente por minha vez. Mas, entre deixar de conhecer um lugar que me interessa, por falta de companhia, ou conhecê-lo sozinho, escolho sempre a segunda opção. E nisto tenho o consolo de saber que pelo menos a super idolatrada e megalomaníaca ciência contemporânea me apoia.
É claro que em pelo menos algumas dessas ocasiões eu gostaria imensamente de estar acompanhado (bem acompanhado, aliás); seria simplesmente maravilhoso, creio, ter alguém com quem trocar minhas impressões do passeio - especialmente se esse alguém fosse uma mulher ao mesmo tempo espetacularmente bela e intelectualmente sofisticada, combinação, aliás, cada vez mais rara no mundo atual, senão completamente inexistente, e que para mim, contumaz e impenitente amante das belas artes e do belo sexo, seria nada menos do que perfeita - mas nem sempre é possível (quase nunca é); particularmente, nos dias que correm, faz-se uma tarefa verdadeiramente hercúlea encontrar alguém minimamente sensível e inteligente o bastante, seja qual for o gênero, sobretudo neste país asinino e sáfaro, para apreciar e sustentar uma conversa de alto nível sobre arte, cultura e temas afins.
Mas com o tempo, e a muito custo, um alto custo, aprendi a gostar de minha própria companhia. É a única que nunca me faltou, a única que permanece e permanecerá presente em minha vida, até o fim dos meus dias, neste pálido e turbulento ponto azul, solitário e perdido na periferia do cosmos.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

O Cão Negro

 
Hoje o soturno e espectral cão negro que há longos anos habita as profundezas mais recônditas e ignotas de minha mente resolveu sair de sua toca e morder-me. Não foi uma mordida muito grave, pelo contrário, não me arrancou nenhum pedaço, foi apenas o leve e simples roçar de suas pontiagudas e ferinas presas em meu coração. Mas tanto bastou para contaminar minha alma com o vírus da apatia e a bactéria do desencanto, e, por consequência, acabar com meu ânimo, pelo resto do dia.
Há décadas, essa sombria e feroz criatura vive a espreitar meus passos, silenciosa e obstinadamente. Para onde quer que eu vá, lá está ela, sempre, a me observar. É sua hedionda e repulsiva figura que se oculta, sorrateira e lúgubre, atrás de cada revés que sofro, atrás de cada negativa que ouço, atrás de cada rasteira que a vida me dá (e tem sido muitas, nos últimos tempos), como que a rir-se, sardonicamente, de meus fracassos, deleitando-se horrores com o meu sofrimento. Ela se esconde entre os troncos podres e calcinados da floresta morta que há tempos trago em meu peito, como no clássico poema de Kilkerry, e mistura-se, quase imperceptivelmente, com as frias e nuas sombras das ruínas que restaram de meus sonhos destruídos, apenas a aguardar, pacientemente, a hora certa para me devorar, de uma vez por todas.
Conseguirá fazê-lo, algum dia? Receio que sim, espero que não.

sábado, 26 de junho de 2021

Burrice Artificial


Trinta dias de bloqueio no Facebook, por causa do GIF acima, que tentei publicar como comentário em um grupo privado no reino absolutista e neopuritano de Mark Zuckerberg. Diz o todo-poderoso algoritmo facebookiano que ele fere as "regras da comunidade" contra a nudez e o sexo explícito. Não vejo como, nem porquê. Qualquer leitor aqui presente pode ver claramente que não há nudez nem conteúdo sexualmente explícito nesta imagem. É apenas sensual.
Não é a primeira vez. Em outra ocasião, sofri igual período de bloqueio por publicar uma imagem semelhante.
No entanto, já vi, inúmeras vezes, fotos e vídeos exponencialmente mais explícitos, quase pornográficos, em diversos outros perfis e páginas do Facebook, e nada aconteceu aos seus responsáveis. Tais fotos e vídeos permanecem, pelo contrário, no ar, ao passo que minhas publicações apenas muito vagamente eróticas são constantemente excluídas, sem a menor explicação ou direito de defesa.
Este é exatamente o tipo de coisa que me faz duvidar seriamente da real inteligência da hoje tão falada e célebre inteligência artificial. Especialmente nas redes sociais. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O Último Grande Poeta


Hoje, o mundo amanheceu mais triste e vazio. Leonard Cohen morreu. Cessem todos os cantos! Calem-se todas as vozes! Que importam todas as grandes e pequenas mazelas deste nosso infeliz e atribulado planeta, toda a sua miséria, todo o seu ódio, toda a sua violência, toda a sua vilania, toda a sua aspereza, toda a sua hostilidade, toda a sua hipocrisia, toda a sua hediondez, que importa tudo isso, enfim, pergunto eu, diante desta cruel e devastadora notícia: Leonard Cohen morreu? O último grande poeta da música se foi. É verdade que ainda temos Bob Dylan. Mas Cohen era-lhe, ao meu ver, imensamente superior. Penso, inclusive, que o bardo canadense é que deveria ter ganho o Nobel de Literatura deste ano, ao invés do trovador americano, apesar da opinião do próprio Cohen a respeito. Não pela falta de méritos de Dylan, é claro, ele os têm de sobra, mas pela superabundância do talento poético de Cohen, que absolutamente nada fica a dever ao Everest de Minnesota.
Para mim, pessoalmente, o mundo perdeu grande parte de seu valor e de sua beleza, no dia de hoje. As canções do vate de Quebec marcaram várias passagens importantes e inesquecíveis de minha vida secreta, formaram a trilha sonora de grande parte da minha história. Há, também, vários aspectos de sua biografia com os quais eu sempre me identifiquei profundamente; sua depressão crônica, por exemplo (o que, aliás, foi o que chamou minha atenção para sua obra, quando a descobri, através de uma matéria veiculada pela revista "Veja", por ocasião do lançamento de "Ten New Songs" - em minha opinião, o melhor de todos os seus discos, e o que eu primeiro ouvi). Agora que ele morreu, sinto como se eu tivesse realmente perdido um amigo, um amigo íntimo e de longa data. Dói, dói muito.
Para tentar aplacar um pouco a minha tristeza, conforto-me - ou pelo menos tento confortar-me - com a vaga e tênue esperança de que Leonard Cohen, ao partir, tenha finalmente encontrado a paz que tanto buscou em vida. Espero que um dia eu também possa encontrá-la (preferencialmente, antes de morrer).