quinta-feira, 6 de novembro de 2008

À Guisa de Prefácio

Escrevo estas páginas movido por uma inquietação secreta, que me corrói em silêncio. Não sei nomeá-la com precisão — talvez seja apenas uma espécie de cansaço existencial, talvez um último fio de esperança. Em mim, esses dois sentimentos aparentemente tão díspares e inconciliáveis convivem com frequência, e às vezes parecem ser exatamente a mesma coisa. O fato é que algo me parece deslocado, tanto dentro quanto fora de mim. Como se um fio essencial tivesse sido cortado, deixando o mundo mais rápido, mais acessível, mas também mais raso e mais só.
Não pretendo ensinar nada, nem tenho a autoridade e o conhecimento necessário para fazê-lo. Nem quero consolar a ninguém, ou talvez somente a mim mesmo. Na verdade, escrevo apenas porque o gesto de escrever ainda me parece um dos poucos que não se renderam por completo à utilidade. Escrevo por necessidade íntima, por um impulso quase orgânico, como quem recolhe pedras numa praia deserta sem saber bem o que fazer com elas. Recolho pensamentos, fragmentos, intuições — restos do humano que ainda pulsa sob minha pele, apesar de tudo.
Pois sinto falta de um tipo de criatura humana, se é que algum ela realmente existiu, com a qual ao menos era possível sonhar. Um homem interior, afeito à lentidão filosófica, à dúvida, ao pudor de saber-se limitado. Sinto falta da ideia de que o ser humano não é um produto acabado, nem uma máquina a ser melhorada indefinidamente — mas uma possibilidade frágil, trêmula, cujo valor está justamente em sua incompletude. A técnica moderna nos ensinou a controlar tudo, menos a nós mesmos, e agora ameaça nos ultrapassar e tornar obsoletos. E onde antes havia silêncio fértil, hoje há apenas ruído. Um ruído constante, viscoso, que agora preenche todas as fendas por onde antes a alma costumava respirar.
Talvez o que me falte não seja o passado, mas uma forma de presença. Um modo mais profundo de habitar o mundo e a mim mesmo. A palavra “humanismo” agora me aflora à mente, mas não como bandeira, e sim como vestígio. Uma lembrança vaga de que o homem já foi considerado um fim em si, e não meramente um meio. De que a educação, um dia, visou a formar almas, e não apenas competências profissionais. De que o saber tinha cheiro de biblioteca, peso de manuscrito e o tempo lento da escuta.
Não me iludo com saudosismos tolos: a história não volta atrás. Mas ainda acredito que se pode reabrir certos caminhos interiores, mesmo que entre ruínas. E é por isso que escrevo, para tatear um sentido possível, para resgatar, entre as cinzas do pragmatismo e do desespero contemporâneo, alguma centelha de dignidade humana. Que se chame a isso “humanismo” ou qualquer outra coisa, pouco importa. O essencial é que se trate de um esforço, talvez inútil, mas profundamente necessário, de reconciliação: entre o homem e sua humanidade, entre a razão e o mistério, entre o saber e o silêncio.
Escrevo, enfim, como quem restaura antigas estátuas, com pequenos estilhaços de uma figura maior que não consigo mais ver inteira. Talvez alguém, ao ler-me, também se reconheça em alguma lasca. Ou talvez não. Ainda assim, escrever me parece ser, hoje, um dos poucos gestos de resistência contra a degradação da condição humana nesta era líquida e caótica. 
Eu ainda resisto.

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