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Prefácio

Faíscas


Tenho escrito pouco nos últimos tempos, é verdade, mas não por falta de ideias, e sim porque cada vez mais as palavras que brotam de meu cérebro parecem carregar consigo um gosto acre, como se a memória, em vez de me oferecer flores secas para colecionar em cadernos, despejasse em minhas mãos alguma substância instável e ácida, incapaz de se fixar no papel sem ferir a pele e perturbar os sentidos.
Tenho escrito pouco, apenas o bastante para não ser confundido com um cadáver, mas não o suficiente para ser tido com um legítimo homem de letras. E o pior é que, do que sai de minha pena, nada me orgulha: talvez meu inconsciente, hoje, esteja menos interessado em beleza do que em vingança.
Tenho escrito pouco, e mesmo esse pouco parece me espiar do papel, como quem sabe a meu respeito mais do que realmente deveria. Há algo de indecente no que emerge, como se cada palavra guardasse um segredo antigo que eu mesmo esqueci. Mas continuo, porque parar seria confessar que o silêncio também me assusta.
Tenho escrito pouco, e talvez seja esse o modo mais honesto de me manter inteiro ou, ao menos, de preservar as rachaduras em ordem, como quem cataloga ruínas para que não desabem de vez. O problema é que, mesmo no silêncio, as palavras sussurram. Elas se insinuam nas frestas da rotina, espreitam nos gestos mais banais, pairam sobre a superfície das coisas como uma poeira fantasmagórica, que ninguém ousa limpar.
Há dias em que acordo com a sensação de que um livro inteiro se escreveu em mim durante a noite, mas, ao tentar alcançar suas páginas, elas se desfazem; não em branco, mas em manchas, borrões de tinta, que denunciam uma tentativa frustrada de permanência. E, no entanto, insisto. Talvez por orgulho. Talvez porque esse vazio, tão familiar, ainda pareça preferível ao pavor de uma ordem forjada, de uma tranquilidade artificial.
Tenho evitado reler o que escrevi. Não por medo de reconhecer erros, mas pelo temor de encontrar vestígios de mim mesmo que já não me pertencem. Há uma estranheza que cresce entre o eu que escreve e o eu que vive, como dois conhecidos que se cruzam na rua e fingem não se ver, cada um carregando a vergonha de quem já foi íntimo demais do outro.
Sim, tenho escrito pouco. Mas cada palavra que escapa carrega um peso desproporcional, como se arrastasse consigo um fragmento de algo que não quero, mas também não consigo deixar para trás. Ainda assim, continuo a escrever, ainda que pouco Porque, no fundo, suspeito de que seja esse fardo, esse escrever sem consolo, a única forma que encontrei de ainda me sentir verdadeiramente vivo.
Tenho escrito pouco, e mesmo esse pouco parece construir uma espécie de santuário torto, onde me recolho, não para rezar, mas para ouvir os ecos das preces que esqueci de entoar. Às vezes, imagino que cada texto é como uma carta que envio a um destinatário ausente, alguém que talvez tenha morrido, ou pior, tenha mudado tanto, que já não reconheceria minha caligrafia. Escrevo para ninguém, e ainda assim, cada frase carrega o peso de uma confissão. Escrevo, sobretudo, para mim mesmo.
Não me interessa mais a clareza. Busco o que resiste à explicação, o que pulsa entre os vãos da lógica. Há verdades que só se deixam tocar quando vestidas de névoa. E é essa névoa que tento moldar, mesmo sabendo que ela escapará por entre os meus dedos, assim que eu tentar descrevê-la. O papel, coitado, não tem culpa; é só o palco onde a falha se exibe com dignidade.
Tenho escrito pouco, mas aprendi a desconfiar da abundância. As palavras fáceis, os períodos bem estruturados, os textos que se resolvem. tudo isso me parece hoje uma forma de covardia elegante. O que me interessa é o que vacila, o que treme antes de cair, o que grita no escuro, o que olha para o abismo sem temer que ser encarado de volta por ele, o que não encontra abrigo nem em si mesmo. Escrevo como quem tateia dentro de um poço, não esperando achar o fundo, mas apenas algum som que prove que ainda existe o eco de um último homem entre as ruínas.
E se continuo a escrever, não é por esperança. É por uma espécie de fidelidade ao exemplo de Sísifo. Porque, mesmo que a escrita nada me devolva, é dela que me alimento. A ausência, a falha, o quase, tudo isso tem me parecido mais sincero que qualquer forma plena e acabada. A beleza, se ainda existe neste mundo triste, talvez esteja justamente nesse fracasso perseverante de tentar dizê-la.
Tenho escrito pouco, mas quando escrevo, é como se riscasse um fósforo dentro de um quarto fechado há anos, a exemplo de Faulkner, que os acendia em campos noturnos. A luz dura apenas o bastante para revelar o pó suspenso no ar, o contorno gasto dos móveis, as manchas de umidade nas paredes; depois, vem de novo a escuridão, mas agora impregnada de memória. Cada texto é essa faísca breve, insuficiente para aquecer, mas capaz de me lembrar de que ainda há coisas a ver, mesmo que sejam destroços. Há poesia mesmo nos mais sujos e fétidos escombros.
Às vezes, penso que escrever é o modo mais disfarçado de chorar. Um soluço ordenado, dividido em linhas, pontuado por vírgulas e pontos finais, como se fosse possível domar o lamento. Não será toda a literatura um grande desfile de carpideiras? O choro de Proust começou na infância, durou sua vida inteira e se transformou nos sete caudalosos volumes de "Em Busca do Tempo Perdido". 
Outras vezes, escrevo como quem escava, como quem cava um buraco dentro de si para encontrar algo raro, não ouro, não ossos, apenas a certeza de que há real profundidade a atingir. Porque o que mais temo é a ideia de ser raso.
Tenho escrito pouco, e cada vez mais longe dos olhos dos outros. Há nisso um pudor que não sei bem de onde veio. Talvez seja medo de que me leiam como se folheassem um diário alheio deixado propositalmente aberto, como se tudo o que deixei escrito fosse uma armadilha para ser decifrada. Não é. Escrevo para manter alguma coisa em pé dentro de mim. Não procuro testemunhas, mas refúgio.
Os outros também não fazem a menor questão de me ler. E há momentos em que cansa falar sozinho.
Se alguém me perguntasse por que não desisto, e vou plantar batatas, eu talvez não soubesse responder. Mas, entre o silêncio absoluto e esse fio torto de linguagem que às vezes consigo puxar, fico com o fio. Ele talvez não leva a lugar algum, no final das contas, pois não é o mesmo fio de Ariadne. Mas ao menos me dá a ilusão do movimento. E isso, por ora, me basta.

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